quinta-feira, 16 de abril de 2020

Fernanda do Vale -- Na estátua abolicionista

Ao lado do Mercado da ribeira está um jardim quadrado chamado Praça D luís I. Costumava estar mais ou menos relvado, tem meia dúzia de palmeiras, velhotes sentados nos bancos, turistas a tirar fotografias e pessoas a passear cães atrelados. Também tem pombos que pousam e cagam num homem de pedra fardado de General. Quem se der ao trabalho de ler a placa percebe que tal personagem, é nem mais nem menos, que o Marques de Sá da Bandeira. Apesar de ser todo de pedra, na estátua, tal como era no homem, há uma perna de pau. Na mão puseram-lhe um estandarte e fica ali os dias e as noites inteiras a olhar para o sul e a ver partir os comboios para Cascais. Aos pés do marques está um leão que se deixou dormir e junto ao leão, uma figura feminina, meio despida com um bebé ao colo. Diz que é a Liberdade. Mais ao sul, passando o Tejo, passando todo o Alentejo, saindo por Sagres e saltando todo o mar Atalntico, sempre a avançar para sul, pulando o Equador, continuando para sul até Angola. Passando Luanda que fica para trás à esquerda, continuando a descer pelo mar, até chegar à terra que se chama Namibe, aí, vira-se à esquerda, sobe-se a serra até ao Lubango. Depois de todo este percurso para chegar a esse quase fim do mundo, podemos encontrar outra estátua do mesmo gajo. Desta outra estátua do mesmo Marquês de Sá da Bandeira resta apenas um corpo decapitado. Perdeu a cabeça com a independência de Angola. O corpo do corpo mutilado continuou no jardim Hodji Aohuenda no Lubango, desconfortavelmente de pé, no pacato jardim daquela cidadezinha que o colonialismo baptizou com o seu nome e apelido. E o marques lá está, velho mutilado num país onde mais mutilado menos mutilado, não faz assim tanta diferença. O colono chamou Sádabandeira ao Lubango porque o senhor Sá da Bandeira foi um acérrimo defensor da causa colonial. Dizia e escrevia para quem o queria ler que "o desenvolvimento português passa por África." Ainda jovem, conheceu Angola, bebeu da agua do Dembo e ficou enfeitiçado, impressionado e apaixonado pela terra que viu. Soldado de profissão, marques por vocação mas geneticamente agricultor, fez as contas e percebeu que aquela terra toda precisava de ser trabalhada... mas faltava mão de obra. No inicio do século XIX Angola estava despovoada há três séculos. O negocio dos negreiros e os sucessivos de raptos esvaziara completamente o país. Depois de muito pensar, de puxar por aquela sábia cabecinha, e de fazer contas, achou que se nos queríamos comparar com o ingleses, devíamos abolir a escravatura. Mais por razões económicas do que por razões humanitárias, o marques foi um abolicionista convicto. E defendia as suas ideias abolicionistas na corte e em escritos para quem o quisesse ler. Tempos depois, já o Sá da Bandeira estava morto e enterrado, já o Brasil estava independente, a coroa endividada a pedir empréstimos aos ingleses que não aprovavam o comercio de escravos... e pronto, lá aprovaram a lei da abolição da escravatura, fizeram a estátua ao homem e espetaram com ele alí onde está perto dos bares do Cais do Sodré. A Fernanda era negra, linda e inteligente todos os dias e puta, às vezes. Viveu com artistas e fez a cama com ministros...Fernanda do Vale, Preta Fernanda como era conhecido no Chiado. Diz o registo que nasceu em Cabo-verde em 1862 e morreu já na republica nos anos trinta. Muito bonita e inteligente, foi-se instruindo com a vida e as companhias. Foi amante de luxo dos senhores de alta-finança do virar do século. Mas namorou e conviveu com a nata intelectual. Uns deram-lhe dinheiro, outros deram-lhe conhecimento. Ficou viúva muito cedo, ainda com menos de vinte anos. Sozinha, sem trabalho nem recursos safou-se como pode. E safou-se bem. Vestiu-se de odalisca e dançou para príncipes. A cavalo lidou touros em Cascais. Com o Eça de Queirós, de quem era intima, assistia aos espectáculo do Teatro Trindade no camarotes para escândalo das damas de sociedade e inveja dos jornalistas. Dizem que cantava o fado ao piano. Dizem também que se sabia defender bem com uma navalha de barba que usava escondida na roupa. Num País que era paisagem e numa Lisboa que era o Chiado ficaram famosos os escândalos da Preta Fernanda.  Pois nesses primeiros anos do século XX, depois do ultimato ingles o nacionalismo colonialista estava em alta. Decidiram por isso fazer uma estátua ao marques de Sá da Bandeira. Quiseram por a estátua ao lado do recém inaugurado Mercado da Ribeira. O escultor designado pelo ministério para fazer a obra, um artista de regime, cujo nome não interessa, andava enamorado pela Preta Fernanda... Muito naturalmente escolheu a escultural paixão como modelo para a figura da Liberdade de quem decalcou o busto e o rosto em gesso para depois fazer em bronze. Com grilhões nos pés e um criança nos braços esta Liberdade de bronze mostra o peito perfeito e a carnuda boca a denunciar a caboverneanidade da modelo. Bendita Mãe Africa que te fez tão linda!