quinta-feira, 16 de abril de 2020

Janis Joplin -- A voragem dos chapéus à cowboy

Janis Lyn nasceu gordinha e cresceu provinciana. A sua família era ultra-conservadora e religiosa. Passou a infância e início da adolescência a cantar no coro da igreja, que era obrigada a frequentar. Foi frequentemente vítima dos abusos de colegas na escola primária e no liceu. Aquelas crianças e adolescentes cedo aprendem a recusar toda e qualquer diferença. Comportamentos e aparências passam obrigatoriamente no crivo do apropriado. Se é apropriado é tolerado, se é diferente, é inapropriado e deve ser estripado por todos os meios. Mal se identifica qualquer característica que saia do rigoroso padrão, recorre-se ao ataque e à humilhação. Para que todas as peças encaixem no puzzle da sua sociedade de sucesso. Consome, obedece e agradece a Deus viveres neste país. O objectivo final será um mundo de gente igual na forma e no conteúdo. A este fascismo social e cultural, chama-se Texas -- Anos 50. Mas a Janis não encaixava. Era gorda, tinha borbulhas e foi ficando cada vez mais tímida e fechada em si mesma. Quando lhe dirigiam a palavra, por vezes, gaguejava as respostas. Porque tinha uma sensibilidade apurada que naquela altura se manifestava nos traços dos seus desenhos - aos dezassete anos entra na universidade do Texas para o curso de Artes Visuais. Quer ser pintora, acha. Sente-se artista, tem a certeza. E a vida da menina tímida deu uma reviravolta. Passou umas semanas num lar religioso, mas ao contrário do que a família pretendia, mudou para uma república. República mista, com rapazes e raparigas a partilharem a mesma casa e sabe-se lá o que mais... Nessa casa de pecados e revelações, onde se fazia tudo menos estudar, havia sempre uma guitarra. Cedo se percebe que com dois ou três copos no bucho, a menina gordinha, que quase não se dava por ela, até canta. E até canta mesmo umas coisas. Quando abre a goela, as paredes tremem e só as pedras da calçada não ficam de pelos eriçados ao ouvi-la. (Mesmo sabendo que no Texas não há pedras da calçada). É então que a menina começa a ir a bares de karaoke cantar. Depois passa a cantar acompanhada à guitarra. Entretanto, com os amigos da música, forma uma banda. Todos os fins de semana vai cantar em bares dos arredores da cidade universitária. Chegam as primeiras notas ganhas com o seu trabalho. O curso vai ficando para trás... Lá na Terra dela, no Texas, começa a ser falada. Na igreja o pastor relata o seu caso como exemplo para os pais terem mais cuidado com a liberdade que dão aos filhos. Mas a Janis Lyn não ouviu o pastor e continua o seu percurso de artista. Muda-se para San Francisco. Canta e liberta-se. Pelo menos faz por se libertar. A relação com a família descamba completamente. Quando vai tentar reconciliar-se com os seus, estes recusam a entrada na sua própria casa. Vai para um hotel na sua própria cidade. Embebeda-se, chora e canta. No dia seguinte, corta definitivamente com os pais e com o Texas. Vieram os amores, correspondidos, não correspondidos, doces, azedos e ácidos, alguns muito ácidos. Uma fuga para a frente com uma gravidez indesejada. A opção de abortar era a única saída, foi tirar ao México, em Tijuana. Volta a tempo de continuar a cantar. É preciso pagar a renda. No camarim cai, desmaia e não é do álcool. Internamento por hemorragia. Os jornais a falarem do caso. E ela a cantar para pagar as contas. No Texas tudo se sabe. Os copos, as passas, os namorados, as namoradas, o aborto e as camisas largas sem soutien. Tudo é analisado e pesado na balança do povo que é juiz permanente das causas dos outros. E ela continua a cantar. E a vender discos. O sucesso nacional da Janis é visto naquela cidade onde nasceu como uma ofensa pessoal e um atestado de burrice crónica a cada um e todos os habitantes. Dói-lhes o sucesso dela. E ela a cantar. A ansiedade e o medo deram lugar a uma depressão profunda. Compensa com ervas exóticas, copos e amores mais ou menos livres. A educação religiosa e conservadora deixou marcas profundas no sentimento da culpa, sempre presente. Continua a cantar e continua a beber. Para não beber em seco, acompanha o álcool com comprimidos, speed e umas tripezinhas daquele LSD bom que se fazia na altura. E vá de cantar. Sempre a cantar. Começa também a decorar as veias dos braços com furinhos feitos com agulha presa a uma seringa. Aparece sorridente nas fotografias e a dieta líquida que tem feito, tirou-lhe peso. Os discos dela vendem-se bem. Vendem-se bem em todo o lado, menos lá na terra dela do Texas. Cheira um risquinho de coca antes de subir ao palco, só para ter energia para cantar. Quando acaba o trabalho, dá um piquinho de cavalo só para poder ter um bocado de paz e poder descansar. Porque, na sua essência é uma mulher conservadora, não abandona o seu velho e primeiro amor: o álcool. E os gajos que fazem discos a faturar à conta da voz da Janis Lyn. Curiosamente, ou talvez nem tanto, a canção que a levou ao estrelado chama-se, literalmente, "um pedaço do seu coração". Passou em todas as rádios com uma Janis Lyn já sem voz a implorar para que todos tirassem um bocado do seu coração!!! E todos tiraram. Até para vender calças de ganga serviu. Todos gostam da voz dela a esvair-se em copos, seringas e amor mal-feito atrás do palco. Todos todos não, todos, menos aquela malta lá da terra dela no Texas. Em 1970, de tanto se dar, o coração da Janis Lyn deixou de bater. Muitos lamentaram. E aquela malta lá da terra dela do Texas, consternada, teve finalmente oportunidade para dizer: --- Sempre a achei esquisita, desde miúda... via-se logo que não acabava bem!