segunda-feira, 8 de novembro de 2021

Minas de ouro no quintal


Viveu os primeiros anos de infância uma barraca emprestada à mãe, no fundo do quintal nas traseiras de um bar que atendia camionistas. 

Quando tinha 8 anos, foi violada.  O violador, que também era namorado da mãe, exigiu o silêncio de Marguerite. Avisou-a: se falares mato-te a ti e mato a tua mãe. A menina ficou calada. Muda durante sete anos. 

Nos subúrbios de St Louis no Missouri nos anos trinta do século XX uma menina negra e muda não tinha grandes prespectivas. Com a ajuda de um a vizinha, aprendeu a ler. Como não estava disponível para conversas leu durante sete anos.

Depois voltou a falar. E falava muito e bonito. De uma eloquência que todos paravam agora a ouvir. Foi para São Francisco.

Ainda aos quinze anos tirou a carta de condução e tornou-se motorista de autocarros. Aos dezassete foi mãe.

Bonita e grande enchia com a sua graça, inteligência e exuberância os lugares onde estava. 

De São Francisco foi para Hollywood, onde ganhou a vida como actriz e bailarina. No final da segunda guerra Mundial assumiu o nome de Maya Angelou. Deu o calipso a conhecer aos americanos e começou a escrever para teatro e depois cinema. Correu os estados unidos de norte a sul com a sua companhia de teatro de variedades. 

A viu e viveu tantas e repetidas vezes situações de injustiças, de racismo e de segregação que acabou por se envolver na luta pelos direitos civis nos estados unidos. Conheceu Luther King, conviveu e foi amiga de Malcom X. 

Farta de ver a história parada, no final dos anos sessenta, foi para África ver a história acontecer. Primeiro  Acra no Gana onde foi jornalista e escritora  depois para o Egito de Nasser. Com amigos e camaradas sul-africanos, envolve-se no movimento de combate ao apartheid. 

Em 1970 pública o primeiro livro de poesia.

Desde aí nunca mais parou de escrever. Teatro, ensaio, poesia, contos.

Cantou e disse poesia em tomadas de posse de presidentes com o mesmo amor com que o fazia em associações de apoio a sem-abrigos.

Morreu em 2014.

Viveu, publicou livros e ensinou até aos 86 anos.

Escreveu isto:

" A minha altivez ofende-te?

Não leves isso tão a mal,
Porque eu rio como se eu tivesse
Minas de ouro no meu quintal."

E tinha. Tinha. Mas é que tinha mesmo.

terça-feira, 10 de agosto de 2021

Luzia Pinta de Angola a Castro Marim


Arrancaram-lhe a roupa e deixaram exposto e o nu o seu corpo na maturidade dos quarenta e seis anos. O chão de Lisboa estava frio naquela manhã de dezembro. Mas a Luzia não sentia frio. O medo tomou-lhe conta de todos os sentidos. Não conseguia sentir outra coisa alem do terror. 
À volta, tres padres e dois carcereiros. Os eclesiasticos de batina preta e os carcereiros vestidos de linho e flanela a cheirarem a cebola e a vinho. Atiraram-na para cima de uma especie de torno de madeira onde a ataram com as mãos e os pés presos atrás das costas e a madeira encostada ao corpo. 
Os carcereiros rodaram um mecanismo que esticou as cordas. A Luzia sentiu a madeira a entrar-lhe nas costas enquando as articulações dos braços, ombros, ancas joelhos e pés cediam. Os intestinos e a bexiga esvaziaram-se instantaneamente. A boca abriu-se num hurro de dor que se ouviu la em baixo junto ao Tejo.
O mais velho dos padres com a mão direita interrompeu o trabalho dos carcereiros e perguntou à Luzia se queria confessar. 
Ele queria.
Confessou tudo o que o padre quis que ela confessasse. A tortura durou sete dias. 
Os padres saiam para comer e descansar. Os carcereiros tambem iam rodando. Apenas Luzia Pinta ficou por ali. As vezes atiravam-lhe agua para cima que ela bebia.
Enquanto durou a tortura a Luzia confessou.
Confessou celebrava espiritos cantando, dançando, comendo e bebendo e que chamava a estas festas calundus. 
Confessou que era bruxa, que curava com ervas, que via o futuro nos buzios. Confessou que evocava espiritos da natureza e evocava os antepassados. Que possuida pelos espiritos que evocava dava conselhos e consultas. 
Confessou que vinha gente de toda a provincia de minas gerais para vê-la e que lhe pagavam pelas consultas e trabalhos de magia que fazia.
Confessou que foi amante do seu dono, aquele, o Pinto Portugues que a comprou novinha com doze anos  ainda e virgem. Confessou que foi violada pelo Pinto até este adoecer e morrer de mal desconhecido que foi ela que provocou e pediu aos espiritos porque não aguentava mais a carne do Pinto Portugues na sua carne. Confessou que foi amante dos dois filhos do Pinto. Os donos que a herdaram. Confessou que por artes màgicas os encantou aos dois que lhe deram a liberdade antes de casarem com duas irmãs ricas. Confessou que foram eles que lhe deram o nome de Luzia Pinta.
Confessou que vivia livre desde os vinte e seis anos numa casinha que os irmãos Pinto fizeram para ela encostada à capela de Nossa Senhora da Soledade, ja afastada do centro da freguesia da Igreja Grande na Vila de Nossa Senhora da Conceição do Sabará, em Minas Gerais, bispado do Rio de Janeiro, Brasil.
Confessou que cultuava os Espiritos da Natureza, desde que se lembra. Confessou que aprendeu com uma avó velha là nas Lundas em Angola, onde nasceu e de onde a raptaram para a escravizar. 
Confessou que vivia amantizada com um negro fugido que tocava tambor nos rituais de suprestiçao e feitiçaria que fazia. Confessou que só dormia com o tal negro quando a ela lhe apetecia e ele tinha vontade.
E teria confessado mais, se o inquisidor quisesse fazer mais perguntas.
Como era preta e não judia. Como nunca tinha sido batizada em cristo. Como a suprestição que fez foi causada pela ignorancia e não cuspiu na cruz nem na hostia.
E como se estava a aproximar o Natal.
O inquisidor, na sua infinita misericordia,  ao fim de uma semana de tortura, que acabou a 24 de Dezembro de 1742, decidiu mandar recolher a bruxa angolana aos calabouços da inquisição porque a investigaçao estava acabada.
A Luzia Pinta esperou na prisão da inquisiçao de Lisboa um ano e meio até ao auto-de fé que determinou a sentença.
Na torre do tombo está ainda o papel da sentença: Culpada de abjuração de leve, condenada a quatro anos de degredo em Castro Marim, não entrar mais em Sabará.
E pronto. Luzia Pinta. Mãe de Santo, curandeira, amante e sentenciada pela inquisição. De Angola até Castro Marim por onde se perdeu o rasto da Luzia e onde eventualmente os seus ossos repousarão anónimos à espera de justiça.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

Ana Loura – O Corno da Vaca

 


Na segunda metade do século XIX, na em plena zona de Saloia, na aldeia do Casal das Neves, na extrema do concelho de Vila Franca de Xira, já próximo da Vila de Arruda dos Vinhos, viveu e trabalhou a Ana Loura.

A Ana, apesar de ser Loura de nome, era morena de pele e generosa nas formas. Teve vinte e uma vezes grávida, pariu dezanove crianças das quais dezasseis chegaram à idade adulta.
Sabemos dela através do que o Dr Tito deixou escrito. O Tito que além de ser médico era um homem de cultura e saber, dedicava-se à antropologia. Antes de ser delegado de saúde em Arruda dos Vinhos, foi médico em Alcoutim no início dos anos 80 do século XIX. Tinha um nome pomposo: Tito Bourbon e Noronha mas era um homem simples. Exerceu a profissão de médico durante mais de cinquenta anos, aposentou-se por limite de idade nos anos trinta do século XX. Escritor compulsivo, guardou em diários o registo do seu trabalho. Ajudou em 301 partos, tratou 1012 cabeças partidas, mais de quinhentas por agressão, algumas com fracturas de crânio. Um número interminável de maleitas várias. Recebeu da Direcção-Geral de Saúde um atestado de louvor. Percorria as serras a cavalo, por montes e serras, sempre diligente. São inúmeros os registos de situações em que abandonou as refeições, as festas, serões nas colectividades ou as touradas a que assistia para ir atender doentes. Muitas vezes gente humilde que não tinha com que lhe pagar. 
Morreu em Lisboa em 1946 com quase noventa anos e foi sepultado no cemitério de Arruda.

Foi o Dr Tito quem nos deixou nos seus diários, o registo da vida da Ana Loura. Terá sido ainda no final do século XIX que se conheceram. O Dr. Tito ajudou a Ana a parir o seu décimo sexto filho --  uma menina. Um parto complicado. Foi a própria Ana quem mandou chamar o médico que a ferros lhe tirou a criança e lhe salvou a vida. A Ana agradecida partilhou com o médico os segredos da sua profissão, que a bem ver era a mesma que a do Tito. Também a Ana, curava e ajudava pessoas em situações de aperto. A Ana Loura foi bruxa. Bruxa como a sua mãe e bruxa como o viriam a ser as suas filhas e netas.

Entre o médico e a bruxa durou uma improvável amizade de várias decadas, baseada na partilha de conhecimentos. O Tito ia ter com a Ana e apontava o que ela dizia nos caderninhos dele. A Ana, por seu lado, aprendia com o Tito procedimentos terapêuticos que não necessitavam de rezas nem de esconjuras, mas que de qualquer forma ela própria acrescentava para os tornar mais eficazes.

Antes de ser chamado ao parto da Ana, o Tito já tinha ouvido falar na Bruxa. Era a Ana Loura a sua principal concorrente. Várias vezes se surpreendeu com curas e reclamações entre os seus doentes que não tomavam a medicação prescrita que por falta de dinheiro ou sovinice, preferiam os tratamentos da bruxa Ana. 

A Ana também já tinha ouvido falar no Dr. Tito e mesmo sem o conhecer já o admirava pela fama de gente boa que ele deixava entre os pobres daqueles desolados campos.

Nos jornais locais e nos círculos intelectuais de Vila Franca a Lisboa, a quem o quisesse ouvir, o Dr. Tito falava e escrevia sobre a Bruxa da Arruda elogiosas palavras caras, palavras de médico letrado. O médico aumentava a fama da bruxa entre os letrados, a bruxa louvava o médico entre os humildes.

A Bruxa Ana, também agradecia a publicidade ao médico com aprovadíssimos coelhos bravos cozinhados em ervas e vinhos que o seu homem apanhava em armadilhas de laço. O Tito assistiu assim ao crescimento da família e à formação das quatro filhas que se tornaram também elas bruxas.

Em 1906, o moderníssimo Diário de Notícias, publica uma reportagem sobre a Bruxa da Arruda. O repórter vai a arruda dos vinhos em registo de aventura como uma expedição a um local remoto e atrasado que era de facto.

A peça jornalística, é tendenciosa e venenosa. Pinta curandeira Ana Loura como uma mulher rude e rica que vive de enganar as pessoas.

A realidade era diferente. Em 1906, dos dezasseis filhos criados todos trabalhavam. O Marido da Ana era agricultor no minifúndio, e trabalhava do nascer do sol até à noite cerrada. A Ana que nessa altura teria os seus quarenta e oito, além de cuidar da numerosa família, trabalhava na quinta, tratava das ovelhas e duas vezes por semana ia vender os queijos que fazia ao mercado...E claro, a sua condição de bruxa impunha que atendesse quem a procurava e aos dias em que atendia, ia bastante gente.

Mas o DN mandou um repórter temido pelo veneno com que escrevia. Um tipo relativamente novo, mas que tinha tanto de ambicioso como de repelente.

O tal jornalista, terá usado o nome do Dr Tito para ser recebido pela Ana. Mas quando passou pela Arruda nem sequer foi cumprimentar o médico. Foi direto à casa onde lhe disseram que vivia a bruxa.

A humilde sala, cheia de gente à espera para ser atendida...e aquele pedante de Lisboa a chegar cagando superioridade na pose, no olhar e no andar.

A Ana Loura percebeu que o Dr. Tito não tinha culpa...

A vedeta da caneta, sem sequer se apresentar, nem perguntar pela saúde à mulher que parou de trabalhar para o receber, ainda à frente de toda a gente, perguntou à queima-roupa:

-- Então Senhora Ana, corre-lhe bem o negócio da bruxaria?

Todos calaram para ouvir a resposta.

– Mas cais negócio!? Aqui não se faz negócio, aqui cura-se gentes e adivinham-se coisas. Negócio fez vossa mercê ao querer casar-se com a filha do seu patrão! Mas correu-lhe mal... agora anda zangado com o mundo porque se lhe meteu essa ideia que ela lhe anda por os cornos com outro. Desengane-se homem! Vossa mercê se está engano! Ela não tem outro. Do que a sua esposa gosta é de moças magras como ela! Você ser corno é só corno de vaca! 

O jornalista não precisou de mais para fazer o seu trabalho.

A reportagem saiu a 29 de Novembro de 1906. Dizia que a Bruxa da Arruda tinha uma fortuna avaliada em mais de vinte contos. Não falou no Dr Tito nem no corno da vaca. 

É normal, quando conhecemos uma realidade que vemos retratada no jornal, percebemos sempre que o essencial fugiu à letra de imprensa.

sábado, 19 de dezembro de 2020

Lilith, a Livre


Diz a bíblia que vosso deus quando criou Adão fez do mesmo barro a primeira mulher e chamo-lhe Lilith. Que na língua suméria significa “hálito”. "Sopro divino", se quiserem um registo mais bíblico.

Quando o Primeiro casal criado fazia o segundo amor, à Lilith, apeteceu-lhe mudar de posição. Propôs ao Adão que desta vez, não lhe calhasse a ela ficar outra vez por baixo e sujar as costas e o rabo com o musgo que alcatifava o paraíso. Que desta vez pudesse ficar por cima e assim desfrutar de mais prazer do amor, que da ultima vez tinha ficado quase, quase la, mas as raízes da macieira nos rins começaram a incomodar e não tinha conseguido chegar.
O Adão, inseguro naquele primeiro relacionamento, ficou calado e em vez de fazer a vontade à Lilith, foi aconselhar-se com deus, que pode saber muito de criações do mundo em seis dias, mas de mulheres não percebe nada.
A Lilith, claro que não gostou que o companheiro fosse fazer queixinhas ao criador, pegou na trouxa e fez-se à vida. Adão, que não aprendia, em vez de aproveitar o bom tempo e seguir viagem com a Lilith, voltou a ir ter com deus para lhe contar do sucedido. Deus que naquele dia não estava para se chatear, mandou três anjos à procura rebelde Lilith. Pediu aos três anjos para trazerem Lilith para o marido e para apertarem com ela a avisarem, a ver se se deixava de invenções.
Acontece que a primeira mulher estava no bem bom a curtir uns banhos de sol naturistas e umas ondas mornas do Mar Vermelho.
Quando os anjos vieram com aquela conversa da tanga, de voltar para o marido, de dar outra oportunidade e de nhamnhamnham... Tá claro, que a Lilith mandou os anjinhos de volta pelo caminho por onde chegaram. Deus ficou um bocado lixado com a atitude da Lilith e dizem foi por isso que a amaldiçoou.
A moça amaldiçoada mas solteira, ficou pela primeira vez livre e por isso feliz, na sua indisciplinada rebeldia. Passou a deitar-se com quem queria e como queria.
Com todos menos com ele. Definitivamente, não voltou a deitar-se com o Adão que teve se desfazer de uma costela para pagar por uma companhia. E mesmo esse amor comprado, no que tocava a inovação, todos conhecemos a Eva, boa moça mas cheia de pudores com parras e limitadinha, em termos de perversões de cama o mais longe que foi, foram umas brincadeirinhas quase inocentes com dentadinhas numa maçã e nem sequer era a maçã de Adão.
A primeira mulher criada, essa deu-se bem! Saída do Éden e com entrada direta na lista das malditas, a Lilith dedica-se ainda hoje e até à eternidade, a apanhar sol na pele nua e a perverter os humanos em sonhos eróticos. Sem regras nem posições proibidas.

domingo, 13 de dezembro de 2020

Luz del Fuego


Em Itapemirim as casas antigas foram construídas com as pedras do lastro dos navios. Os barcos primeiro vieram carregados com pessoas escravizadas, depois partiram carregados de cana de açúcar, e mais tarde de café. Pelo meio trouxeram pedras nos porões para equilibrar nas manoras. Foi em Itapemirim que os escravocratas se revoltaram contra a lei que abulia a escravatura. E foi em Itapemirim que os escravizados ainda que ilegalmente tiveram que se revoltar contra a sua condição e mais uma vez foram esmagados com um banho de sangue e lama, em que soldados e fazendeiros organizaram caça aos trabalhadores que se recusavam a serem tratados como escravos... caçadas essas que terminavam invariavelmente em execução após tortura. Aconteceu massivamente.

Quase até ao limiar do seculo XX. Depois não. Depois tudo foi diferente. 

Ou não tanto.

As estrelas, os deuses e as marés alinharam-se para que na segunda feira de carnaval do ano mágico de 1917 nascesse a Dora Vivacqua. Assim foi!

Nasceu a menina, no Ano da Serpente, no penúltimo dia do Aquário e naquela segunda-feira que sendo segunda mais parece todo um fim de semana. Precisamente nesse dia . Nasceu menina de gente importante lá na terra. Foi a decima quinta filha de um rico proprietário rural, neta de ricos proprietários rurais e irmã de destacados advogados e políticos locais, estaduais e federais. Apesar de toda esta carga genética para ser mais uma menina de elite que se tornaria numa esposa da alta burguesia e mãe de gente importante... a Dora cortou as voltas ao destino e desde muito pequena que decidiu ser quem ela era e não quem os outros queriam que ela fosse.

Na infância era conhecida por rebelde. Os irmãos e irmãs mais velhos achavam piadinha à menina refilona. Depois na adolescência, no inicio dos anos trinta, as irmãs e os irmãos foram deixando de achar tanta piada, à menina mais nova da família, quando provocava ostensivamente e afastava com a sua ousadia rapazes que seriam potenciais noivos.

Aos pais e irmãos, esclareceu que não se queria casar. Foi estudar dança para o rio de Janeiro. Estudou e aprendeu a dançar. Não pediu autorização a ninguém e apresentou-se publicamente como bailarina. A família, alertada por cartas dos pequenos escândalos que aquele furacao Dora ia causando, ameaçou tirar-lhe a mesada. A Dora, mandou-os meter a mesada onde o sol não brilha e começou a aturar dançando quase nua, triplicando assim o seu salário.

A família católica e conservadora elaborou um plano que termina num internamento psiquiatrico. A reclusão dura poucos meses. A Dora não sofria de nenhuma doença. A Dora queria e era apenas ela mesmo.

Quando a Dora saiu, saiu mais confiante em si mesma e nas suas verdades.

Criou um espetáculo para si mesma, coreografando a sua própria dança. Apresentava-se dançando com adereços exóticos e com as suas duas pitons, que eram simultaneamente os seus animais de estimação, as suas parceiras no palco e quase sempre as únicas peças de roupa que vestia.

Em 1944, em plena segunda guerra mundial, apresentou-se no no Circo Pavilhão Azul. Apareceu nua em palco. Cumpriu prisão e pagou multa por atentado ao pudor. Escreveram-se rios de tinta e o escândalo apareceu em todos os jornais. O espetáculo fez um enorme sucesso. Ninguém ficou indiferente. Muito menos os familiares ricos, nomeadamente os seus catorze irmãos.

Por estes anos os seus amigos, companheiros e parceiros de trabalho e cama eram pessoas do circo.

Terá sido o palhaço Cascud o de quem foi íntima que lhe sugeriu o nome artístico Luz del Fuego.Luz del Fuego era tambem o nome de um baton argentino que todas as mulheres brasileiras queriam ter... e que todos os homens queriam beijar... O nome pegou bem. Pegou fogo.

A família possessa fazia tudo para lhe cortar a ousadia e a liberdade de ser quem queria ser. Mas aquela pobre menina rica, nem mesmo mudando de nome conseguia fugir à maldição do conservadorismo das elites sul-americanas. Prepararam-lhe  outra armadilha. Numa tentativa de reconciliação familiar, a que a Dora ingenuamente vai, reage com violência as provocações de um dos irmãos e atira-lhe com um cinzeiro à cabeça. O medico psiquiatra pago pelos irmãos já está a postos na sala ao lado e todos testemunham que a Dora se tornou violenta e furiosa. Mais uns meses de internamento, mais tratamentos compulsivos de comprimidos e terapias que não precisa. Debilitada fisicamente, mas completamente dona de si, acaba por sair.

Em 1947, escreveu um romance autobiográfico “Trágico Black-Out”. Assina como Luz del Fuego e critica a hipocrisia dos casamentos convencionais, o machismo e a arrongancia publica e impotencia privada. Fala abertamente de sexualidade e detalhamento de alguma práticas. Dá uma visão feminina e feminista. Um dos irmãos, o Senador Atílio Vivacqua, tentou comprar todos os exemplares editados do livro para poder queimar aquelas paginas que faziam arder o que ele acreditava ser o seu bom-nome.

Gostou tanto de escrever como de dançar. E uma vez que o seu primeiro livro foi aquele sucesso que esgotou todas e quaisquer edições, no ano seguinte, em 1949, publicou seu segundo romance, “A verdade nua”. Mais escândalos e mais sucesso. É nesta altura, no inicio nos anos cinquenta que começa a defender o naturismo.

Nos anos cinquenta é uma revolucionaria dos costumes mantendo as ligações às elites. Defende o direito ao divorcio, o direito ao amor livre, o direito ao naturismo. Luta contra o conservadorismo idiota e hipócrita de um brasil economicamente modernizado e culturalmente subdesenvolvido.

Mulher de grande inteligência e cultura mantinha as relações necessárias com o poder instituído naquela democracia do mais ou menos faz de conta. Tera começado por ameaçar criar um partido politico que defendia o naturismo e o amor livre... Os jornais dão-lhe visibilidade. Percebe que causa medo na classe politica. Vai falar pessoalmente com o Ministro da Guerra, um conhecido seu que lhe devia favores e informa-o da sua intenção de entrar na politica. Quando a conversa acaba, a Marinha do Brasil tinha cedida à Luz del Fuego uma ilha onde a artista faria as suas experiencias artísticas e sociais e em compensação a Luz del Fuego não ia entrar na politica, nem criar partidos nem falar com oposicionistas.

A Dora, no seu jeito frontal e desbocado, conseguiu a concessão da ilha Tapuama de Dentro, localizada próxima de Paquetá, na baía de Guanabara. O lugar, rebatizado como Ilha do Sol. Fez o primeiro clube naturista da América Latina. Em 1960, na ilha da Luz del Fuego, algumas das estrelas de Hollywood passeavam nuas enquanto bebiam agua de coco. Entre as estrelas, a mais bela das estrelas nuas, a própria Dora.

Só que os anos sessenta no Brasil acabaram em 1964.  A chegada ao poder dos militares e a criação da ditadura apodreceu o brasil por dentro.  O Clube de Dora foi encerrado. Da ilha paradisíaca fizeram-lhe uma prisão domiciliaria, onde a Dora podia andar sem roupas, podia estar, mas não podia sair. Foram anos tristes para a Dora. Num relatório da policia politica diz que “ela vive sem roupa e pernoite e fornica com o seu caseiro mestiço”. Assim descrevem e pensam os militares que raptaram a liberdade.

Mas a Luz del Fuego pelo simples facto de existir, continuava a incomodar muito as elites brancas e conservadores. 

No dia 19 de no dia 19 de julho de 1967 a Dora Vivacqua e seu caseiro foram assassinados. Morta com golpes de remo, seu corpo foi esfaqueado, amarrado a pedras e atirado ao mar. A ditadura prende e condena dois pescadores pelos horrendos crimes. Os jornais continuam a faturar a sua conta. 

Naturalmente que os militares no governo, tiveram mão de aço a punir os pescadores. Encontraram um culpado mestiço e pobre que foi fácil de condenar, uma vez que não podiam julgar-se nem a eles mesmo, nem condenar toda uma classe de idiotas e hipócritas conservadores que publicamente criticavam e em privado desejavam o fogo daquele mulher de Luz.


sábado, 14 de novembro de 2020

Santa Jandira do Meretrício da Saudade


Campinas foi um povoado que nasceu na beira da estrada e cresceu com o café. Da segunda metade do século XIX até depois da primeira guerra mundial, viveu-se a loucura e a bebedeira do dinheiro que chegava do café. Mas por cada agricultor que se tornou rico a produção de café, contam-se os muitos que morreram na miséria a tentar que isso acontecesse!

Com a grande crise do capitalismo de 1929, os preços do café caíram. Dois ou três maus anos agrícolas com a geada a desfolhar as plantas fez baixar a produção. Os agricultores que investiram tudo o que tinham a plantar e a fazer contas com o que se ganhava nos tempos da guerra, viram-se confrontados com a dura realidade de terem  todos os credores do mundo e meia dúzia de mirrados grãos de café de baixa qualidade e desvalorizado na mão. Mas são assim os negócios...

Uns anos antes antes da grande crise, no dia 8 de maio de 1911, numa família de agricultores com vocação para serem ricos, mas sem o dinheiro necessário para que isso acontecesse, nasceu Maria Jandira. Maria que é nome de santa, Jandira, porque a mãe gostava. Tinha um outro sobrenome diferente do “dos Santos” com que o povo a batizou.

Jandira cresceu naquele ambiente pequeno burguês de provincia onde a hipocrisia dos católicos e o moralismo dos protestantes dão as mãos para estrangular todo e qualquer resquício de liberdade e espontaneidade. Cresceu como menina de boas famílias e foi educada para um dia vir a ser uma senhora casada. Mas a crise cortou-se as voltas. Aos dezoito anos, a família da Jandira estava na miséria e o casamento esperado desvalorizou-se como os grãos de café que o pai tinha para vender e não vendeu.

As dívidas contraídas pela família a crescerem e a necessidade de trabalhar empurrava todos os que viviam naquela casa para a rua. Na mercearia a conta crescia e o merceeiro veio falar com o pai da Jandira. A rapariga enquanto o pai falava com o portugues, fez contas à vida: casar com o merceeiro transmontano a cheirar a suor e a cebola, vinte anos mais velho ou fugir para ir ter com o Carlinhos que era um moço lindo de fama feia, mas de boas famílias. O moço era um bocadinho estroina, mas lindo e já lhe tinha jurado eterno amor... A Jandira não hesitou, abriu a janela e voou.

Não voou muito, afinal de contas morava no rés do chão. Bateu as asas até à casa do namorado e do bairro de casas abastadas no subúrbio onde ainda vivia o Carlinhos até a Rua Visconde de Rio Branco, é um passeio que se faz bem numa noite quente. O rapaz não podia deitar a Jandira na casa da família... e por isso levou-a para a pensão que conhecia, ali entre os bairros de Botafogo e Conceição, no centro de Campinas.

Depois de fazerem o amor que precisavam ambos de fazer, do qual a Jandira estava mais necessitada, diga-se por ser verdade, depois de terem dormido juntos o que restava da madrugada... Carlinhos saiu pensativo. No caminho, enquanto a cidade acordava,  preparou a conversa que tinha que ter no dia seguinte. Que iam ser muito felizes juntos, é bom de ver. Que eram feitos um para o outro. Mas que não estava ainda preparado para avançar para um casamento. Que a amava, claro, que se casava com ela, de certeza, que era um grande amor... Mas faltava o dote, para iniciarem a vida. Que ela ia ter de ajudar. Que com uma certa quantia de dinheiro, podiam ser muito felizes. Que depois de juntarem o dinheiro iam juntos para o Rio. Que os quinhentos quilômetros que separavam Jandira do Rio de Janeiro eram suficientes para deixar para trás todo o passado. Que iam ter filhos e ser muito felizes. Mas que agora era preciso o sacrifício do trabalho duro.

A Jandira não estava a perceber. Mas depressa percebeu. Com a ajuda do Carlinhos e os esclarecimentos da Dona Laudelina, mulher experiente em gerir o negócio do amor vendido, compreendeu. Ensinaram-lhe tudo: como trabalhar e sobreviver aquele trabalho. Afinal de contas era assim que viviam o resto das moças que moravam na pensão da Dona Lau para o onde o Carlinhos a tinha levado.

O meretrício não se faz por vocação, mas por disciplina. Enquanto disciplinadamente a Jandira juntava dinheiro para o casamento, o Carlinhos ia fazendo negócios. A comprar casas a famílias na miséria e transformar em alojamentos para os imigrantes que vinham chegando. Um empreendedor. Ao fim do dia vinha dormir a pensão e fazer contas com a Jandira. Ela dava-lhe as notas e ele pagava-lhe em amor e em sonhos que é quase a mesma coisa. As outras meninas que se prostituíam ali, sonhavam e fantasiavam com um amor e um noivado como o do Carlinhos e da Jan. As amigas e colegas de cruz, costuraram-lhe um vestido de noiva lindo que a Jan experimentava as escondidas para que o Carlinhos não visse e não atraísse o azar e a tragédia sobre aquele amor tão puro.

Mas a tragédia aconteceu à mesma. Como todas as grandes tragédias, aconteceu sem se esperar. Ou pelo menos sem a Maria Jandira esperar.

O Carlinhos, que apesar dos hábitos de malandro até era de boas famílias, e que agora já tinha algum dinheiro, inesperadamente anunciou noivado com uma pindérica do interior. Com filha de um produtor de café, daqueles que ainda ficou mais rico com a crise. As coisas são o que são e um homem de negócios tem de ser pragmático.  O Carlinhos, prestes a tornar-se o Senhora Carlos  acabou tudo com a Jandira. Dói, mas tem de ser. 

Os gritos da moça rejeitada ouviram-se ao longe. O seu pranto inundou o centro de Campinas.

Mas não houve volte atrás. O Carlos meteu o chapéu, bateu a porta e saiu definitivamente. 

Enlouquecida pela dor, sem ser capaz de suportar a rejeição, a Jan fechou-se no seu quarto, vestiu o vestido de noiva, pôs na cabeça  grinalda branca e canonizou-se santa, mesmo sem o aval do papa. Deitada, despejou o conteúdo de dois candeeiros a petróleo sobre ela e sobre o vestido. Quando o combustível ensopou a roupa da cama e a palha do colchão, acendeu um fósforo. 

Maria Jandira morreu vestida de noiva. Tinha vinte e três anos.  Foi no dia 24 de Maio de 1934.

As chamas do incêndio no quarto da Jandira, iluminaram toda a cidade de Campinas.

A familia demasiado hipocritica para assumir a pobreza que a levou à prostituição,  não veio reclamar o que restava do corpo. Foram as prostitutas e os malandros da baixa que trataram do velório. Do quarto queimado, resgataram a unica fotogradia de Jandira que puseram na campa.

Mas desenganem-se os que pensam que a Jandira descansou nesse momento.

Primeiro foram as amigas e colegas de profissão que começaram com a romaria à campa. Para confidências de amor e fazer pedidos.  Depois começaram vir outras moças, também meretrizes de outros sítios. Vieram moças de família também. A campa da Jandira tornou-se local de culto. 

Nos últimos oitenta e seis anos, a fama tem crescido. 

Ainda hoje, todos os dias chegam cartas ao cemitério da Saudade, na praça Voluntários. Vem dirigidas a Jandira. Chamaram-se Maria Jandira dos Santos. Dos Santos, porque dizem que a Jandira faz milagres. Sobretudo ajuda aos que sofrem de amores. Trazem-lhe flores, pulseiras, perfumes, velas e cartas com pedidos. Muitos muitos pedidos. A Jandira, disciplinadamente, faz o que pode.

quarta-feira, 10 de junho de 2020

Bonita com o Sol em Peixes e ascendente em Escorpião

Nasceu com o sol em Peixes, no dia internacional da mulher. Oito de março de 1911, precisamente doze dias antes do grande incêndio em que os donos das fábricas mataram aquelas cento e tal operárias em Chicago. A menina de que vos falo nasceu milhares de quilómetros a sul e sobre o sol quente que seca a terra e os homens. A anos luz de distância das fábricas que soltam fumo e produzem lucro. Quinhentos quilómetros afastada de Salvador, capital e da Bahia e cidade do Mundo. Nasceu na Malhada de Caiçara, arredores de Glória, interior remoto e desviado do sertão baiano, ali juntinho à divisão com o estado de Alagoas. A mãe chamava-se Joaquina Conceição Oliveira, Oliveira era do marido, mas todos a conheciam por Dona Déa. A filha, foi chamada de Maria da Déa, Maria de nome próprio e da Déa, por parte da mãe. Em 1926, já a Maria tinha corpo e desejos de mulher, e toda a beleza de uns quinze anos saudáveis de quem cresceu no campo. Porque o clima é propício às tentações do tinhoso e a moça era assanhada de resposta e de olhares, a Dona Déa decidiu casar a filha antes que fosse tarde. Disponível estava um primo que, sendo uns dez anos mais velho, tinha como ofício fazer e consertar sapatos. Além da profissão de sapateiro, o Zé de Neném, assim se chamava o primo, tinha também o hábito de se embebedar com cachaça e gastar o que ganhava pagando momentos de convívio com raparigas pobres que viviam de se prostituir. As famílias quando combinaram o casamento, tinham esperança que com uma moça bonita na cama, o Zé se deixasse de putas e ficasse mais tempo em casa. A Maria da Déa, além de bonita, já vimos que tinha vontade própria. Casou com o primo mas não se sujeitou à sina de ficar mulher-casada, queria ser apenas mulher. Com feitio distraído e sonhador dos nascidos em peixes, mas com os repentes violentos dos escorpiões, seu marcador ascendente. Como seria de esperar, o casamento não tornou mais caseiro o Zé, nem mais recatada a Maria. Foi um relacionamento conturbado, dizem os historiadores que é malta que não gosta de escrever sobre zaragatas e cenas tristes de violência doméstica. O Zé de Neném, além de putanheiro e bêbado, quase sempre, às vezes ainda lhe dava para ser violento. A Maria defendia-se como podia e defendia-se bem. Mulher do nordeste às vezes vira bicho e quem vai à guerra dá e leva. Farta de ser abusada e negligenciada pelo marido, iniciou um caso extraconjugal, coisa que acontece com frequência. Envolveu-se com um comerciante, João Maria de Carvalho, que lhe oferecia sapatos, roupas e outros presentes... A Maria gostava de ser bem tratada e de se sentir bonita. O sapateiro quando ficava sóbrio desconfiava dos sapatos, dos vestidos e dos cornos, dizia que a matava. Depois bebia e aquilo passava-lhe. Mas, se as coisas não tivessem acontecido como aconteceram, aquilo acabava mal. Não que tenha acabado bem. Mas acabava mal e mais cedo. Naqueles anos violentos, deambulava pelos sertões da Bahia, Pernambuco, Sergipe e Alagoas o grupo de Lampião, Virgulino Ferreira da Silva que era assim que o homem se chamava. Ladrões nómadas e justiceiros contra o feudalismo dos coronéis senhores absolutos num mundo de gente pobre sem justiça nem nada para roubar. Quando a Maria viu o Virgolino apaixonou-se pelo moço calado e de óculos, que apesar da atitude sempre discreta, emanava poder. Ele encantou-se com a beleza da cabocla, sangue cruzado de índia, branca e negra naquela cor de cobre e fogo que as deusas e as trabalhadoras rurais têm no norte do Brasil. Tornaram-se amantes porque se amaram desde o primeiro dia em que se encontraram. Para trás ficou o sapateiro, o cheiro a cachaça e os olhos negros. Para a frente toda uma vida de aventuras. Passariam nove anos juntos. Nove intensos anos que perduram numa história de amor para sempre contada. Ele, o Lampião, era um rei sem coroa com o seu bando de cangaceiros como corte. Ela, rainha nos acampamentos e senhora absoluta do coração do Lampião, seu rei proclamado. Na extravagância dos roubos e dos saques, apareciam tesouros que a Maria arrecadava. Gostava de se vestir com vestidos de seda, luvas com estampas florais, sandálias e botas de cano curto. Preciosidades das senhoras e damas das cidades que uma menina do campo nunca sonhara um dia vir a ver, quanto mais a puder usar. Também gostava de joias pregadeiras que dispunha na faixa de couro da sua espingarda. Uma costela que devia ser de cigana, levá-va-a a enfeitar os cabelos com fitas onde cosia moedas, de preferência de ouro ou de prata. No pescoço e nos pulsos, perfumes. Ao lado do seu companheiro, no calor da batalha, vestia couro como todos os outros. Mas sempre que havia ocasião para isso, gostava de se vestir bonita e de se enfeitar. A vida no cangaço era difícil, mas a Maria não conheceu outra vida que não a difícil. Pelo protagonismo e magnetismo do companheiro, às vezes surgiam crises de ciúmes. Mas os relatos contam que se tratavam ambos com paciência e carinho. Em 1931, viajaram para uma fazenda escondida. Um lugar num paraíso verde onde a água corre e os pássaros cantam. Afastados da guerra, que era o dia-a-dia, para desfrutarem de uma lua de mel que nunca tiveram. Foram os dias mais felizes de ambos. Terá sido nestes dias felizes que a Maria se engravidou. O casal teve uma filha, batizada como Expedita Gomes de Oliveira Ferreira. As regras não escritas, mas escrupulosamente cumpridas do cangaço, determinavam que a criança nascida no mato, fosse entregue para ser criada por um casal de amigos sedentários. Assim fizeram eles. Entregaram a menina a um casal de pequenos criadores de gado. Diz a lenda que a Maria, amarrou um pano sobre as mamas cheias para secar o leite e para que não se caíssem. Cavalgava e chorava de dores no peito sem fazer um som. A partir daí passou a contar os dias para voltar à fazenda e poder ver a sua filha. Foram seis anos de idas e vindas, umas vezes com Lampião, muitas vezes sozinha. Foi numa manhã fria de finais de julho que tudo se terminou. Sem aviso prévio, como quase sempre acontecem as coisas definitivas. A Maria tinha-se levantado e começado a preparar o café, quando percebeu pelo nervosismo dos cavalos que havia gente estranha nas proximidades. O exército atacou mortífero. Usaram uma metralhadora. Não queriam fazer prisioneiros. O combate foi rápido e desigual. O homem que amava foi dos primeiros a cair. O Lampião estava habituado a fazer emboscadas e aos combates em campo-aberto e a cavalo, não sabia como reagir quando foi ele o emboscado. De pé e armas na mão caiu morto. A Maria tentou fugir. Foi baleada duas vezes, primeiro nas costas, depois à queima-roupa no abdómen. O cabo José Panta foi quem disparou. Foi este homem quem a decapitou. Com a Maria ainda viva cortou-lhe a cabeça. Estava a cumprir as ordens de levar as cabeças de todos os cangaceiros para serem exibidas na cidade. Assim fizeram os da volante. Foi ainda este cabo da guarda quem pela primeira vez lhe chamou Maria Bonita. Nem a família nem o bando de Lampião a tratavam por Maria Bonita. O sobrenome de Bonita, só se difundiu depois da sua morte. Tinha 27 anos.

terça-feira, 26 de maio de 2020

A língua da Chavela

Nasceu em San Joaquín de las Flores, Costa Rica. Foi registada como Isabel Lizano. María Isabel Anita Carmen de Jesus Vargas Lizano, para ser completo e preciso. A vida e a vontade própria fizeram dela Chavela Vargas. Filha de camponeses, órfã aos quatorze vendeu toda a fortuna da família que consistia em duas vacas e foi para o México. Trabalhou como empregada de balcão numa taberna, vendeu chapéus numa loja, vendeu o corpo nas ruas, vendeu o corpo como modelo para fotografias, vendeu textos para os jornais, vendeu revistas e jornais quando em vez de lhe pagarem em dinheiro lhe pagavam em material impresso. Depois de começar a vender a sua voz em canções, não voltou a ganhar a vida de outra maneira. Cantou até morrer. Sempre que subia a um palco, fazia-o com medo. Depois cantava e o medo desaparecia por magia. Cantava e chorava. E toda a gente chorava nos concertos dela. Dizia de si própria que não era politica. Mas não deixou nunca se enganou no seu posicionamento politico. Nunca esqueceu o meio de onde veio. Viveu muitas vidas. Umas mais doces outras mais amargas. Todas elas cheias a transbordar. Foi nos anos quarenta, logo a seguir à guerra, que José Alfredo Jimenez, El Rey, a “descobriu”. Viu a moça cantar num obscuro palco de cantina, vestida como um camponês, de calças e poncho. Na voz toda a dor e cor do México verdadeiro. A voz e maneira de cantar da Chavela, assentavam que nem uma luva nas letras e melodias do Rey. Ficaram juntos uma eternidade de noites tequilhadas. Cantavam e bebiam até cair. Depois acordavam, levantavam-se e cantavam e bebiam mais. Foi assim durante uns tempos. Dois corações conservados em álcool a uivar à lua. Dois fígados cansados de destilar tanta emoção. Terá sido depois deste período, que o José Alfredo fez um esforço para se libertar do álcool. E da Chavela. Esforço em vão, pois continuou amigo e confidente da Chavela e da tequilha até à hora da sua prematura morte. A Chavela nesta pausa de secura do Rey, terá conhecido o Diego de Rivera e a Frida Kahalo. Com o Diego bebeu, aprendeu arte e fundamentou a sua consciência politica com argumentos científicos e sociais. Com a Frida, viveu um amor e uma paixão proibida pintada na história. Com ambos bebeu. A carreira da Chavela segue empurrada por uma certa intelectualidade de esquerda e a sua voz vai passando na rádio. Continuava vetada a sua entrada às maiores salas de espectáculos. A cantora não queria usar vestidos e saltos altos e nas salas grandes não queriam uma cantora masculinizada a cantar e a chorar rancheiras. Apesar do boicote associado ao escândalo que era a existência permanente e diária da Chavela, a sua voz criou o reconhecimento necessário. Entrados nos anos cinquenta, aproveitou a explosão do turismo americano e passou a cantar em Acapulco. A sua vida sexual, os seus consumos e a sua roupa, no ambiente de festa “very tipical” dos resorts da classe média alta dos gringos, passavam despercebidos com o barulho das luzes. A voz da Chavela não. A voz da Chavela não passava despercebida. Foi a voz que a levou ao casamento da Elizabeth Taylor com o Michael Todd. Uma das mais importantes festas do seculo XX em Acapulco. A Chavela foi não como convidada, mas contratada para cantar. Na manha seguinte, no dia três de Fevereiro de 1957, acordou na cama com a Ava Gardner. Dizem que foi por causa do escândalo dessa manhã, que o Frank Sinatra se separou definitivamente da Ava. Uma coisa eram as traições com outros actores ou famosos, outra coisa era ser encornado por uma cantora mexicana, vestida de camponesa e que a cia dizia que era comunista. O divorcio da Ava e do Frank saiu nesse ano. Acabada a época estival em Acapulco voltava para a Cidade do Mexico onde escandalizava e apaixonava a sociedade católica e conservadora dos finais dos cinquenta e inicio dos anos sessenta. Aconteceu-lhe então a tragédia de um grande amor. Numa festa nos arredores elitistas da Cidade do México, conheceu uma jovem, amante de um senhor muito importante na industria de musical do México: Emilio Azcárraga. Emilio era casado e bem casado na alta-burguesia mexicana, mas apaixonadíssimo por uma jovem modelo que gostava de exibir por todo o lado. Acontece que a bela modelo de curvas perigosas, se encantou pelo hálito de cigarros negros e tequilha da língua da Chavela Vargas. Deixou pendurado o manda-chuva da industria musical para se ir deitar sabe-se lá onde com a cantora. A partir daí o todo-poderoso empresário cortou completamente a carreira musical da Chavela que deixou de poder entrar nas gravadoras. Como nas cantinas nunca a proibiram de entrar, a cantora desceu em espiral até ao fundo de todas as garrafas. Bebeu todos os copos. Nos anos setenta ainda cantou profissionalmente em meia dúzia de sítios. Mas nos anos oitenta vivia da solidariedade de amigos e desconhecidos. Foi no ano de mil novecentos e noventa que numa miserável rua da cidade do Mexico, um velho amigo a encontrou encharcada e quase moribunda, tinha setenta anos. O amigo, percebeu que era preciso ajuda-la mais do que dar-lhe dinheiro para a próxima garrafa, que era isso que ela pedia. Levou umas semanas a convence-la, mas meteu-a no carro e levou-a para o deserto. Deixou-a uma semana com os índios. Os xamanes deram-lhe a beber poyote celebraram todos os rituais necessários para que voltasse a nascer. O milagre aconteceu. A Chavela voltou a nascer. Deixou de beber e continuou a cantar. No ano seguinte, o Pedro Almodover “descobriu-a” num velho vinil e levou a sua voz para o cinema. “Piensa em mi” cantou para o mundo. De noventa e um até dois mil e doze, não parou. Foi o Pedro Almodovar quem a trouxe para Madrid, onde viveu num lar os ultimos vinte anos da sua longa vida de noventa e tres anos. Cantou até ao ultimo dia. Dizia que gostava de viver em Madrid porque tinha mais facilidade em conversar com o fantasma do Lorca de quem se considerava irmã espiritual. Poucos meses antes de morrer, numa das frequentes entrevistas, um jornalista perguntou-lhe se tendo nascido na Costa Rica e vivendo em Madrid há quase vinte anos, ainda se considerava mexicana. -- Nós os mexicanos, nascemos onde nos dá na puta gana!

quinta-feira, 14 de maio de 2020

A Bruxa Boa de Ruhamo

Há coisa de cem anos atrás, por volta de 1920, no país mágico de brumas tropicais, lagos e montanhas verdes nascia Zura Karuhimbi. O parto possível de uma menina, numa pequena aldeia remota da região de Ruhamo. Nesses anos, a terra do Ruanda era administrada pelo todo-poderoso reino da Bélgica. Quero dizer que era um rei em Bruxelas que se decidia sobre a terra, a vida, a miséria e a morte dos ruandeses. A família dos Karumbi, ao contrário da maior parte das pessoas da sua aldeia, não eram agricultores nem caçadores. Dedicavam-se às práticas mágicas de cura e adivinhação.Tratavam dos vivos e dialogavam com os espíritos dos Deuses para a promoção do bem estar. A pequena Zura cresceu neste universo e desde pequenina que aprendeu as milenares e secretas artes mágicas. O governo colonial belga carimbou um papel a decretar que os Karumbi eram hutus. Foi nesse ano de 1925, apequena Zura foi registada... teria já feito cinco aninhos espertos,saudáveis e animados. Na lógica burocrática colonial, o governo da Bélgica decidiu dividir a população de Ruanda em dois grupos distintos:Hutus e Tutsis. Criaram até bilhetes de identidade de cores diferentes que diferenciavam os hutu dos tutsis. Os hutus, eram o grupo maioritário. A minoria tutsi era considerada pelos belgas como uma etnia "ligeiramente superior" e, por isso, tinha acesso a trabalhos um bocadinho mais bem remunerado que os hutos, os tutsis podiam chegar  a criados de casa. Como estavam profissionalmente mais próximos dos colonos, tiveram melhores oportunidades de estudo. Falo naturalmente de escolas religiosas edificadas por missionários. A Zura, como huto que era, sempre esteve afastada do domínio colonial e foi crescendo como aprendiz de feiticeira. Depois da segunda guerra mundial, porque era feio os países modernos terem colónias, o Ruanda passou a ser um território “protegido” pelas nações unidas. Mas continuou a ser administrado pelos belgas. A Zura nessa altura era uma valente mulher de vintes e tais, mãe de filhos, já reconhecida como parteira, curandeira, feiticeira. Era a conselheira de todas as mulheres para as horas boas e más. Vinham de terras distantes para se consultar com a Zura. Chegavam para ouvir o que espíritos tinham para dizer através dela. Vinham e traziam os filhos, para tratar de doenças físicas, emocionais e espirituais.  No final dos anos cinquenta, os hutus revoltaram-se. O Rei do Ruanda escolhido pelos belgas , um tutsi subserviente a Bruxelas, foi assassinado. Os tutsis foram caçados pelos hutus que rejeitando o colonialismo, descarregavam nos tutsi as frustrações contra os colonos fugidos para a Europa. São os hutus que fazem a independência e se tornam o grupo étnico no poder. Alheia aos jogos de poder e às caçadas de homens por homens, a Zura continuou a trabalhar no seu oficio de feiticeira. Atendia hutus e atendia tutsis. Quando entravam na casa da bruxa Zura, os homens era meninos à procura de consolo e as mulheres eram irmãs a procurar ajuda. Lá longe em Kigali foram aprovadas outras leis de opressão, humilhação e injustiça. Desta vez a vitima era os tutsis. Os hutus aplaudiram e praticaram a nova lei. A Zura não sabia de leis. Mas via os tutsis a passar a sua porta. Fugiram, primeiro os mais ricos. Depois os pobres. Por fim, os que se atrasavam a fugir, esses fugiram miseráveis. Fugiam para se refugiarem no Uganda e Burundi. Passaram trinta anos disto. Pouco a pouco, os hutsis que fugiram miseráveis e pobres foram regressando para se dedicarem a agricultura. Os hutsis que fugiram ricos ficaram no Huganda...a prosperar e a organizarem-se. Em 1990 começaram os ataques dos tutsis aos postos de um governo corrupto e desestruturado de hutus. Nos anos noventa a Zura era já uma viúva de mais de setenta anos. Tinha filhos, netos, bisnetos. Há muito que não tinha menstruação. As pessoas respeitavam-na porque era uma curandeira velha,com todo o estatuto que isso tem em qualquer parte do mundo de gente sensata. Quando a história descambou no que sabemos. Quando as catanas deixaram de cortar mato e abrir espaço para hortas e passaram a semear morte e destruição, a Zura assistiu a tudo triste e chorou devagar sem pranto, como choram as velhas. Começaram os massacres feitos por meninos assustados e alimentados de ganza e aguardente falsificada. Crianças soldados, comandados por homens maus e viciosos, telecomandado por homens e ricos e cruéis. Os gritos choros e tiros ouviram-se nos arredores de Ruhamo. A velha Zura, fez o que tinha a fazer, consultou o seu oráculo e falou com os seus Deuses para estancar a hemorragia. Os Deuses disseram-lhe que não estava na mão dos Deuses parar aquilo que os homens tinham começado. A Zura compreendeu os Deuses e descompreendeu os homens. Foi nestes dias de agonia que a Zura Karuhimbi se veio a revelar como uma das mais poderosas feiticeiras que alguma vez pisou o chão velho da terra da Mãe África. Nessas semanas amargas do ano de 1994, pelos campos à voltada aldeia andavam os homens e meninos armados e espalhar morte e destruição. A coisa começou na primeira noite da lua crescente do terceiro mês. À casa onde a velha vivia com os espíritos e Deuses, foi chegando gente desesperada. Chegaram muitos. Na sua maioria famílias tutsis, alguns homens do Burundi e até dois ou tres europeus. Fugiam desesperados. Quando chegavam, a bruxa velha consultava o seu oraculo e dizia: entrem. A entrada da casa da velha feiticeira mantinha-se resguardada por cortinas. Entrava quem ela mandava entrar e ficava lá dentro quem ela autorizava. Assim é naquela montanha de África, desde que o tempo tem memória. Lá dentro, no espaço reservado aos Deuses e espíritos, mais de cem pessoas. Foram-se amontoado como podiam. Quando a Lua estava quase cheia, e isto calhou num sábado, chegaram dois jipes e uma camionete todo-o-terreno carregados de armas, fardas e morte. Do lado de fora da casa, instalou-se o cerco do exercito de meninos drogados e infelizes  e homens tristes e maus. Catanas e armas de fogo prontas a matar sem razão mas definitivamente. Um homem maduro e grande, a cheirar a álcool, melhor fardado que todos os outros e de óculos escuros veio falar à velha. Dizia que sabia que havia tutsis na zona e queria que ela afastasse as cortinas para ele passar e para os seus homens-meninos a quem chamava de filhos, revistassem a casa. O homem também era hutu, como ela. Seguramente vinte ou trinta anos mais novo. A Zura Karuhimbi não tinha mais armas para se defender alem da sua magia e do seu ancestral conhecimento e intimidade com os Deuses. Fez o que tinha a fazer. Andou na direcção da porta da casa grande dos espíritos, acocorou-se a frente do homem fardado, afastou os panos e despejou toda a urina que tinha na bexiga enquanto falava baixinho para a terra que molhava. Depois ficou de pé levantou a cabeça para falar com o militar que era uns dois palmos mais alto que ela e disse: -- Esta é a casa dos deuses, aqui vivem e são cultuados espíritos de muito poder e força. Os espíritos que aqui estão são espíritos de paz e de vida, mas se forem incomodados serão espíritos de destruição e morte. O chão da entrada que eu molhei, é o chão sagrado onde moram os deuses. Molhei para não ser pisado, e para te proteger. Tu não queres atrair a morte e a destruição sobre ti. E é sobre ti que cairá a maldição se tu ou qualquer um dos teus homens passar a cortina que separa o dentro do fora. Eu sou uma viúva velha, já vi muitas estações do ano, não sou nova e enérgica como tu... Não me cabe a mim decidir o que deves fazer com os teus homens. Mas é meu dever dizer-te a ti e a todos a verdade das coisas. O militar ouviu com atenção. Depois recuou, falou com os seus concelheiro de guerra e agradeceu à velha o sábio concelho. Deixou uma garrafa de aguardente e uma galinha como presente. Levantaram o cerco vinte minutos depois de terem chegado. Os refugiados tustis continuaram achegar a partir enquanto durou a guerra. Militares hutus voltaram algumas vezes. A velha Zura sempre os recebeu com educação, sempre os aconselhou bem e sempre o fez partir em segurança para todos com a sua magia. Anos depois da guerra os do governo e das nações unidas quiseram dar-lhe uma medalha. Quando lhe perguntaram quantas pessoas passaram por sua casa para saberem quantas pessoas salvou, a velha Zura Karuhimbi disse que nunca pensou nisso, porque sempre esteve entretida com as coisas que tinha para fazer e que o seu trabalho era de curandeira e não de cobradora de impostos. Descansou de uma vida de trabalho em finais de dois mil e dezoito. Quase centenária, deixou saudades naqueles que a conheceram e que ouviram a sua gargalhada que persistia em fazer-se ouvir mesmo nos momentos mais escuros, das noites mais escuras e sem lua nas montanhas verdes do Ruanda.    

sábado, 18 de abril de 2020

Carlota de Matanzas

Chamaram-lhe Carlota à chegada a Cuba. No leilão onde a venderam foi esse o nome registado. Chegou ainda criança vinda da Nigéria. Separam-na da mãe e seguiu para a Matanzas. Foi escrava de casa, mas porque indisciplinada puseram-na no campo a cortar cana. Os braços e as pernas fortaleceram-se e a vontade fez-se de pedra dura. No verão de 1843, ouviram-se os tambores perto de Matanzas, estava aquele calor húmido e luminoso do verão caribenho onde apenas as noticias corriam rápidas e onde tudo o resto parecia acontecer devagar. Os tambores batiam mensagens de liberdade e de luta. Foram os tambores que comunicaram às pessoas escravizadas nas fazendas o que fazer. Organizar e lutar ou então morrer. Lutar ou continuarem mortos a trabalhar nos engenhos de açúcar. As catanas que em Cuba se chamam machetes deviam deixar de cortar cana e passarem a cortaram as correntes, no caminho percorrido entre a escravidão e a liberdade teriam de se cortar também algumas cabeças. A revolta alastrou-se por várias fazendas. De Agosto entrou-se em Setembro e o grupo de auto-libertados cresceu. Em Outubro corriam boatos de ataques eminentes e todas as fazendas. Os administradores fugiram para Havana com as famílias, contratam mercenários e os capatazes armavam-se ainda mais. Foi a 5 de Novembro desse ano de 1843 que em Triuvirato, os homens voltaram as facas de cortar cana contra os seus carcereiros. A fazenda de Triunvirato, propriedade da empresa Triunvirato, era das maiores unidades de produção de cana de açúcar das Caraíbas. Hora e meia depois do por do sol daquele domingo 5 de Novembro de 1843, o voz dos tambores mais uma vez suou nas barracas onde os escravizados viviam. Os tambores diziam que estava na hora de de afiaram os machetes. Chega de parar de cortar cana, diziam os tambores!!! Quando os tambores anunciaram a liberdade, a Carlota dançou. Quando os capatazes correram como ratos assustados, a Carlota sorriu. Quando os homens armados de espingardas e pistolas começaram a matar indiscriminadamente para recuperarem a fazenda e esmagar a revolta, a Carlota lutou. Menos de uma hora após o inicio dos combates já Carlota dirigia as operações através da Casa-grande. Era preciso alargar a liberdade às outras fazendas à volta. Após o sucesso de Triunvirato, caiu a fazenda de Acana. Várias centenas de trabalhadores rurais escravizados rebeldes se juntaram à luta. Continuaram os tambores a cantar a liberdade. A Carlota que não tinha razões para ficar em Triunvirato. Seguiu para a fazenda de Santa Ana, depois Guanábana e Sabanilla del Encomendador. O exercito de homens livres dispostos a tudo continuou a avançar. Seguiram para as fábricas de açúcar, caíram então os engenhos Concepción, San Lorenzo, San Miguel, San Rafael. Depois, foram os os cafezais e fazendas agropecuárias da zona de Matanzas. Mais tarde seria Havana, cantavam os tambores de pele batida. Quando os tambores se começaram a ouvir no Paseo do Prado, o os comerciantes ricos e burgueses do Vedado rezaram por um milagre. Rezaram, juntaram dinheiro e mandaram telegramas assustados e alarmistas. Esperaram algumas semanas e o milagre chegou fardado, de botas cardadas a cheirar a tabaco e a suor que é como cheiram as camaratas dos soldados. Porque o medo do contagio das revoluções, torna os adversários em sócios e transforma os vizinhos em aliados, vinda de Miami, chegou ao porto de Havana uma corveta da Marinha de Guerra dos Estados Unidos da América. Vandalia assim se chamava a embarcação. Ao comando, o contra-almirante Chaucey, portador de “um ofício” de Washington, que afirmava que Cuba podia contar com a ajuda do governo dos Estados Unidos para esmagar a revolta dos “afro-cubanos. A seguir, já perto de Matanzas desembarcaram mais soldados. Avançaram pois os gringos dispostos a desfazer a tiros de canhões aqueles escravos que não conheciam o seu lugar. Por estradas lamacentas daquele outono molhado seguiram cantando e rindo. Os soldados americanos e os seus canhões a darem caça à Carlota e ao seu exército de pés descalços. O combate foi tão desigual quanto sangrento. Não era só o numero de soldados que seria três vezes mais que os revoltosos, era também o equipamento, as armas a alimentação. Os revoltosos estavam nas matas há semanas a comer o que apanhavam... Os soldados foram alimentados pelas empresas que esperavam recuperar os seus campos para retomarem a produção. O inevitável aconteceu, após os primeiros confrontos, capturaram a Carlota viva. Interrogaram-na para que denunciasse onde e se escondiam e quantos eram os outros revoltosos. A Carlota não disse nada. Pouco familiarizado com os métodos de interrogatório modernos, o capitão que conduzia as operações no terreno, decidiu amarrar as pernas e os braços da Carlota a mulas e por os animais a puxar cada um para seu lado. Para ver se desatavam o nó do segredo. A mulas despedaçaram o corpo da Carlota, mas a sua vontade de calar permaneceu intacta. O levante de Triunvirato estava definitivamente esmagado. No entanto, o segredo que Carlota conseguiu guardar com a própria vida, permitiu a alguns revoltosos chegarem ao pantanal de Zapata. Foi nesses terrenos pantanosos e inóspitos, sem interesse para a industria açucareira nem para a produção de café que muitos homens e mulheres encontraram refugio. Construiriam uma comunidade alargada na zona das grutas del Cabildo. Um grupo grande e disperso de gente pobre a viver com o que a terra e o mato lhes dava. Mas uma comunidade de pessoas livres. E não há dinheiro que pague a liberdade.

quinta-feira, 16 de abril de 2020

Jane Birkin-- O inevitável

Conheceram—se nas filmagens de um filme medíocre mas bem financiado. Ele era uma vedeta de quarenta anos, ela uma jovem atriz revelação de vinte e três doces primaveras. A ela avisaram: cuidado com ele. E ela ainda sem o conhecer, começou logo a ter interesse nele. A ele disseram: vais gostar, faz o teu tipo. Ele, provocador respondeu: depois da Brigite qualquer uma faz o meu tipo. A primeira semana de filmagens foi de trabalho intenso. Muitas cenas de exteriores que era preciso filmar às primeiras horas da manhã. À tarde eram as secas com o realizador a querer ensaiar para o dia seguinte. E à noite os produtores e agentes, chamavam a corja dos jornalistas e fotógrafos para promoverem a fita. Foi numa dessas noites, numa badalada casa da moda em que se bebia e dançava que ele lhe meteu a língua na boca e lhe abraçou a cintura. Ela queixou—se que os sapatos lhe magoavam os pés, ele descalçou—a e atirou para longe as sandálias de salto alto. Passariam juntos doze anos. Os fotógrafos presentes registaram os primeiros beijos. O saliva na língua dele aromatizada de Bourbon e galoise a fundir—se na saliva da garganta dela refrescada por champanhe e com travo a erva. — Vamos sair daqui, tou farto destes merdas! Ela concordou. — Onde moras? — Estou a morar com uma amiga na zona da gare du lest. —Telefonas do meu hotel a dizer que não vais ficar lá hoje... Saíram de fininho sem se despedir. Na rua mais beijos de língua e mãos debaixo do vestido. O Renault dele seguiu por uma Paris quase adormecida desafiando a polícia nos controlos de velocidade e em todos os semáforos vermelhos. No hotel caro, a recepcionista cúmplice perguntou—lhe se queria que servissem uma ceia. Não era preciso. Entraram de mãos dadas no elevador. O amor quase que acontecia ali em plena ascensão, não fosse o plim da chegando ao piso. No quarto ele foi à casa de banho, faz xixi, lavou a cara, penteou—se com a mão e bochechou com pasta dos dentes. Quando voltou ela ainda estava ao telefone com a amiga. Sorriu—lhe, despachou a amiga, desligou e entrou na casa de banho. Fechou a porta branca atrás de si, sentou—se no trono de loiça e fez xixi. Abriu o chuveiro, despiu—se, cheirou—se e entrou no duche. Deixou que a água quente nas costas trabalhasse como relaxante muscular. Depois, conscienciosamente, lavou—se. Toda, por inteiro, dando especial atenção às partes que considerava mais necessitadas. Quando saiu do banho, envolveu—se numa toalha de turco com a área de um campo de futebol e ficou em frente ao espelho. Secou o cabelo fazendo um penteado assim meio despenteado. Gostou de se ver. Serviu—se então da água de Colônia, três borrifos: no pescoço, entre os seios, e sobre a púbis que à época se usava peluda. Deixou a toalha no chão da casa de banho e nua e entrou no quarto. ... O inevitável aconteceu: ele tinha adormecido.

Louise Michele - E as bengaladas do Manuel Joaquim

A Louise Michel era marselhesa mas foi cedo para Paris. Professora, poetisa, enfermeira, escritora e revolucionária. Dirigiu importantes sectores durante a Comuna de Paris. Primeiro como enfermeira, depois como coordenadora do sector da propaganda e nos ultimos dias, de armas na mão defendendo e resistindo pela Comuna Preocupada com a educação infantil, a Louise Michel ainda chegou a ser professora. Aos 26 anos tinha escrito e publicado vários livros relacionados com educação e mudança social. Quando a comuna é esmagada, os algozes fazem da Louise Michele um exemplo, e da farsa do seu julgamento uma enormidade de propaganda anti-comunista. Por pouco escapa à pena de morte e vai deportada durante várias decadas para a Nova Caledonia. Por cá, o Pinheiro Chagas, esse que dá o nome à rua, era um importante deputado nas Cortes. Um homem de referencia nacional, daqueles senhores muito importantes que arrotava coisas muito inteligentes que logo eram repetidas por jornalistas igualmente inteligentes e importantes, amigos e seguidores. Coisas de um passado remoto, de uma democracia de faz de conta, longe da realidade dos dias de hoje neste pais moderno e desenvolvido. Este Pinheiro Chagas, com o seu bigodinho revirado e as suas lunetas de intelectual foi um verdadeiro defensor do desenvolvimento económico, progresso esclarecido e um feroz opositor contra a desordem e o caos revolucionários da Comuna. Quando chegaram as noticias da comuna de Paris, os jornais da época davam mais ênfase ao escândalo de haver mulheres entre as revoltosas, do que às razões da própria revolta. Sobre a Louise Michel, alarve e babão, o respeitado e reputado deputado disse logo: " Se fosse cá em Portugal, não tinha havido tanta desordem, porque em Lisboa, há um Manuel Joaquim Pinheiro Chagas, que é suficientemente homem, para pegar na Louise Michel, lhe levantar as saias lhe dar uns belos açoites nas nádegas, à boa e antiga portuguesa! Para lhe corrigir os excessos e disciplinar-lhe as politicas!" Naquele tempo, os jornalistas gostavam de fazer ecoar frases assim retumbantes de pessoas importantes e depressa publicaram em todos os jornais, que eram dois ou três, as alarvidades do Pinheiro Chagas. Outros tempos. Quem não gostou do que leu foi um outro Manuel Joaquim, de sobrenome Pinto, professor primário e solidário com a comuna de Paris, que dava aulas no “ensino livre” na Promotora, em Alcântara, que era na altura o bairro mais operário de Lisboa. O professor, que até era um homem cordato, escreveu um artigo num jornal de operários “a Revolução Social” a desancar no Chagas. Nada de exageros, simplesmente lhe chamou estúpido e buçal. Os jornalistas amigos do Pinheiro Chagas foram a correr mostrar-lhe o artigo no "Revolução Social". O deputado sentiu-se ofendido e num outro artigo pediu publicamente, explicações ao professor. O Pinto de Alcântara, farto de ler jornais e de artigos para cá e para lá, não se fez esperar, foi até São Bento onde o deputado trabalhava e deu-lhe as explicações solicitadas com uma bengalinha pelos cornos. Foi um escândalo para a Lisboa de então as bengaladas no Pinheiro Chagas.... O professor de Alcântara, pagou uma multa e ainda passou um ano e meio preso por causa dessa explicação que foi dar ao deputado... Mas ao Pinheiro Chagas, as bengaladas que levou, essas ninguém lhas conseguiu tirar de cima.

Joana Darc -- Ardidamente Santa

A Joana sempre foi uma rebelde. Dizem que viveu virgem e que usa apenas como peça de roupa uma túnica de linho sobre o seu corpo nu. A pele das coxas com o cavalo em esforço entre as pernas despidas. O rosto em êxtase e a espada na mão. Uma espada grande de ferro e aço com punho pequenino para o seu pulso adolescente. Nascida camponesa, na terra de Arc, sem outra fortuna além de si própria. Teve a força e a genica necessária para reunir os franceses e quase quase vencer a guerra contra os ingleses. Uma daquelas guerras antigas e longas. Uma guerra de cem anos. Quando falava soprava vento e quando levantava a espada sentia—se o furacão do seu querer. Corações e cabeças tombaram de paixão e desejo pela Joana. A Joana quase—menina, virou a Joana quase—mulher. Mulher, jovem, bonita, carismática e inteligente, combinação perfeita para lhe estragar a vida! Meio caminho andado para a fogueira dos donos do mundo. O resto do caminho fez a galope no seu cavalo. Julgaram—na por bruxa. Não se sabe se era, se não era. Dizem que as há. Depressa a condenaram e mais depressa executaram a sentença. O fogo que a matou aqueceu uma multidão de basbaques e satisfaz o perverso desejo de morte de nobres e padres. Acenderam a chama que em Ruão. Ainda lá está o túmulo para confirmar que o que conto não é mentira. Depois, em cima das suas cinzas frias, acumulando opressão com humilhação fizeram da Joana Santa. Santa católica para rezar nas missas e pedir milagres. Não contentes, sempre os mesmos donos do mundo, trataram de amassar as suas cinzas e fazer do que sobrou um Símbolo Nacional e o patriarcado compensou a impotência de séculos com estandartes em seu nome Sempre que arde uma igreja, não resisto a imaginar a Joana, descida do seu cavalo e de túnica arregaçada, a brincar com fósforos para ajustar contas antigas. Que me perdoem os mais católicos.

Marilyn Monroe -- Onde o escândalo morreu nu

A loura Norma Jean, nasceu em Los Angeles em 1926. Passou a infância em orfanatos e lares adotivos onde o padrão de abuso e fuga se foi sucedendo dos doze aos quinze anos. Com dezasseis casou—se pela primeira vez e foi trabalhar numa fábrica de material de guerra. O marido gostava mais de copos do que dela e por isso separa—se com dezanove. É então que se envolve com um fotógrafo que a convence a fazer algumas sessões de fotografia. Faz muitas fotografias. Fotos de moda, artísticas, com roupa, sem roupa, em estúdio, ao ar livre, em casa... centenas de fotos. Depois envia para agências e algumas vezes é chamada para fazer mais fotos. Mantém o trabalho para pagar a renda e as sopas de tomate enlatadas que eram a base da sua alimentação. Ainda a trabalhar na fábrica, começa a ir a castings para filmes. Em 47 chegam os primeiros trabalhos para cinema, ainda pequenos papéis. Os papéis vão crescendo à medida que o talento vai sendo reconhecido e os manda—chuva dos estúdios reparam nela. Muda de nome para Marilyn Monroe e continua a crescer. No início dos anos 50 é já uma das mais novas e brilhantes estrelas no universo de Hollywood. Em 1953 o jovem Hugh Marston Hefner cria uma revista com fotografias de mulheres nuas a que chama PlayBoy e prepara o primeiro número para sair em Dezembro. Procura fotógrafos e modelos dispostas a pousar para a sua publicação. É então que lhe aparece um tipo a vender—lhe umas fotografias inéditas da vedeta de Hollywood Marilyn Monroe, tiradas uns cinco anos antes...As fotografias dizem que a modelo se chama Norma Jean... Mas vê—se bem que é ela. O fotógrafo pedia uma fortuna pelas imagens, mas o Hefner, que de parvo não tinha nada, arranjou—se como pode e pagou o dinheiro que lhe pediram até ao último cêntimo garantindo a exclusividade. Claro que não é preciso de dizer que a revista foi um êxito total. O escândalo associado às fotos da Marilyn promoveu ainda mais a PlayBoy. Os patrões dos estúdios para quem a Marilyn trabalhava quiseram processar a revista e sacar ao Hugh Hefner "tudo tudo o que tivesse até ao último tostão". Os advogados esfregavam as mãozinhas sapudas de contar dinheiro. Nos jornais os editores e directores preparavam—se para uma cobertura sangrenta. Mandaram jornalistas e paparazzi, voarem a direito, guiados pelo cheiro do sangue e da carne. Assim que a jovem Marilyn saiu à rua, caíram—lhe em cima com flashs e perguntas venenosas. A moça, superiormente inteligente, naquela voz entre o o ingênua e a cama arrasou: — Processar a Playboy? Porquê? Não acham que fiquei bem nas fotografias? Sou uma trabalhadora, e quando fiz aquele trabalho fui paga para o fazer, e bem paga, adianto que ganhei mais naquela tarde de fotografias do que o que me pagavam por uma semana na fábrica! O escândalo morreu ali.

Juliette Greco -- Aquele olhar fodido

Não esquecemos nada. Habituamo-nos. É tudo. A Juliette Gréco é uma preciosidade da colheita de 27. O pai era corso e mãe francesa. Uma casta destas teve de ser criada em Bordeus, onde passou os seus primeiros anos de vida, com o resto da família alargada. De natureza tímida e reservada manteve sempre aquele olhar de quem não pode, nem quer, dizer tudo o que sente e sabe. Um olhar fodido que lhe saiu caro. Até aos treze anos as coisas corriam-lhe bem, era feliz e nem sabia. Depois em trinta e nove chegaram os lobos nazis. A mão de Juliete, mulher de cepa retorcida, liderava a célula comunista da Resistência lá da zona. E já sabemos que esse anos do governo de Vichy e saudações de mãozinhas esticadas, não foram anos bons para os resistentes franceses. E anos particularmente maus para os comunistas. Em 1943 a mãe da Juliete é presa pela Gestapo juntamente com as filhas. Vem embaladas num carro celular para conhecerem Paris. Lamentavelmente para elas, os policias nazis, levam-nas directamente para sede da Gestapo e nem cheiram o ar das ruas. São as três submetidas a tortura. Em conjunto e separadas. Repetidamente. Juliette, tem 16 anos e a irmã tem 18. A mais nova das três mulheres, a que viria a ser cantora, fica mais de mês nas caves dos nazis. É usada sobretudo para pressionar a mãe. Quando os policias arianos acharam que não tem mais nada a arrancar às três mulheres, decidem esquecer-se delas nas celas e não lhes dão comida nem agua. Por capricho, por acaso, por sorte ou por fastio dos carcereiros, é libertada. Acontece numa noite igual às outras, quando lhe dizem mais uma vez que a vão fuzilar. A mãe e a irmã permanecem na prisão da Gestapo. Sai assustada e sozinha paras ruas desoladas de uma Paris ocupada, cinzenta, suja e fria. É uma professora reformada compulsivamente pelas suas simpatias de esquerda, que a recolhe e lhe dá um tecto no bairro de Saint-Germain-des-Prés. Tem um palmo de cara, canta bem, leu todos os poetas e não tem jeito para trabalhar: torna-se artista. Guerra acabada e derrotado o nazismo, sem ainda ter feito os vinte anos, estreia-se como actriz numa peça de Roger Vitrac. Conhece o Sartre, que a apresenta ao Camus, e ao Boris Vian. Está lançada. Apesar do sucesso, mantém a natureza tímida e aquele olhar fodido de quem não fala. É cortejada à vez e gosta de ser assim mimada e bem tratada. A intelectualidade da rive gauche canonizou-a no altar dos cafés. A sua postura de diva discreta e o olhar fodido, fez dela a musa eterna dos existencialistas. Diz a Juliette que não esquecemos nada. Que nos habituamos. E é tudo. Eu acredito.

Fernanda do Vale -- Na estátua abolicionista

Ao lado do Mercado da ribeira está um jardim quadrado chamado Praça D luís I. Costumava estar mais ou menos relvado, tem meia dúzia de palmeiras, velhotes sentados nos bancos, turistas a tirar fotografias e pessoas a passear cães atrelados. Também tem pombos que pousam e cagam num homem de pedra fardado de General. Quem se der ao trabalho de ler a placa percebe que tal personagem, é nem mais nem menos, que o Marques de Sá da Bandeira. Apesar de ser todo de pedra, na estátua, tal como era no homem, há uma perna de pau. Na mão puseram-lhe um estandarte e fica ali os dias e as noites inteiras a olhar para o sul e a ver partir os comboios para Cascais. Aos pés do marques está um leão que se deixou dormir e junto ao leão, uma figura feminina, meio despida com um bebé ao colo. Diz que é a Liberdade. Mais ao sul, passando o Tejo, passando todo o Alentejo, saindo por Sagres e saltando todo o mar Atalntico, sempre a avançar para sul, pulando o Equador, continuando para sul até Angola. Passando Luanda que fica para trás à esquerda, continuando a descer pelo mar, até chegar à terra que se chama Namibe, aí, vira-se à esquerda, sobe-se a serra até ao Lubango. Depois de todo este percurso para chegar a esse quase fim do mundo, podemos encontrar outra estátua do mesmo gajo. Desta outra estátua do mesmo Marquês de Sá da Bandeira resta apenas um corpo decapitado. Perdeu a cabeça com a independência de Angola. O corpo do corpo mutilado continuou no jardim Hodji Aohuenda no Lubango, desconfortavelmente de pé, no pacato jardim daquela cidadezinha que o colonialismo baptizou com o seu nome e apelido. E o marques lá está, velho mutilado num país onde mais mutilado menos mutilado, não faz assim tanta diferença. O colono chamou Sádabandeira ao Lubango porque o senhor Sá da Bandeira foi um acérrimo defensor da causa colonial. Dizia e escrevia para quem o queria ler que "o desenvolvimento português passa por África." Ainda jovem, conheceu Angola, bebeu da agua do Dembo e ficou enfeitiçado, impressionado e apaixonado pela terra que viu. Soldado de profissão, marques por vocação mas geneticamente agricultor, fez as contas e percebeu que aquela terra toda precisava de ser trabalhada... mas faltava mão de obra. No inicio do século XIX Angola estava despovoada há três séculos. O negocio dos negreiros e os sucessivos de raptos esvaziara completamente o país. Depois de muito pensar, de puxar por aquela sábia cabecinha, e de fazer contas, achou que se nos queríamos comparar com o ingleses, devíamos abolir a escravatura. Mais por razões económicas do que por razões humanitárias, o marques foi um abolicionista convicto. E defendia as suas ideias abolicionistas na corte e em escritos para quem o quisesse ler. Tempos depois, já o Sá da Bandeira estava morto e enterrado, já o Brasil estava independente, a coroa endividada a pedir empréstimos aos ingleses que não aprovavam o comercio de escravos... e pronto, lá aprovaram a lei da abolição da escravatura, fizeram a estátua ao homem e espetaram com ele alí onde está perto dos bares do Cais do Sodré. A Fernanda era negra, linda e inteligente todos os dias e puta, às vezes. Viveu com artistas e fez a cama com ministros...Fernanda do Vale, Preta Fernanda como era conhecido no Chiado. Diz o registo que nasceu em Cabo-verde em 1862 e morreu já na republica nos anos trinta. Muito bonita e inteligente, foi-se instruindo com a vida e as companhias. Foi amante de luxo dos senhores de alta-finança do virar do século. Mas namorou e conviveu com a nata intelectual. Uns deram-lhe dinheiro, outros deram-lhe conhecimento. Ficou viúva muito cedo, ainda com menos de vinte anos. Sozinha, sem trabalho nem recursos safou-se como pode. E safou-se bem. Vestiu-se de odalisca e dançou para príncipes. A cavalo lidou touros em Cascais. Com o Eça de Queirós, de quem era intima, assistia aos espectáculo do Teatro Trindade no camarotes para escândalo das damas de sociedade e inveja dos jornalistas. Dizem que cantava o fado ao piano. Dizem também que se sabia defender bem com uma navalha de barba que usava escondida na roupa. Num País que era paisagem e numa Lisboa que era o Chiado ficaram famosos os escândalos da Preta Fernanda.  Pois nesses primeiros anos do século XX, depois do ultimato ingles o nacionalismo colonialista estava em alta. Decidiram por isso fazer uma estátua ao marques de Sá da Bandeira. Quiseram por a estátua ao lado do recém inaugurado Mercado da Ribeira. O escultor designado pelo ministério para fazer a obra, um artista de regime, cujo nome não interessa, andava enamorado pela Preta Fernanda... Muito naturalmente escolheu a escultural paixão como modelo para a figura da Liberdade de quem decalcou o busto e o rosto em gesso para depois fazer em bronze. Com grilhões nos pés e um criança nos braços esta Liberdade de bronze mostra o peito perfeito e a carnuda boca a denunciar a caboverneanidade da modelo. Bendita Mãe Africa que te fez tão linda!

Janis Joplin -- A voragem dos chapéus à cowboy

Janis Lyn nasceu gordinha e cresceu provinciana. A sua família era ultra-conservadora e religiosa. Passou a infância e início da adolescência a cantar no coro da igreja, que era obrigada a frequentar. Foi frequentemente vítima dos abusos de colegas na escola primária e no liceu. Aquelas crianças e adolescentes cedo aprendem a recusar toda e qualquer diferença. Comportamentos e aparências passam obrigatoriamente no crivo do apropriado. Se é apropriado é tolerado, se é diferente, é inapropriado e deve ser estripado por todos os meios. Mal se identifica qualquer característica que saia do rigoroso padrão, recorre-se ao ataque e à humilhação. Para que todas as peças encaixem no puzzle da sua sociedade de sucesso. Consome, obedece e agradece a Deus viveres neste país. O objectivo final será um mundo de gente igual na forma e no conteúdo. A este fascismo social e cultural, chama-se Texas -- Anos 50. Mas a Janis não encaixava. Era gorda, tinha borbulhas e foi ficando cada vez mais tímida e fechada em si mesma. Quando lhe dirigiam a palavra, por vezes, gaguejava as respostas. Porque tinha uma sensibilidade apurada que naquela altura se manifestava nos traços dos seus desenhos - aos dezassete anos entra na universidade do Texas para o curso de Artes Visuais. Quer ser pintora, acha. Sente-se artista, tem a certeza. E a vida da menina tímida deu uma reviravolta. Passou umas semanas num lar religioso, mas ao contrário do que a família pretendia, mudou para uma república. República mista, com rapazes e raparigas a partilharem a mesma casa e sabe-se lá o que mais... Nessa casa de pecados e revelações, onde se fazia tudo menos estudar, havia sempre uma guitarra. Cedo se percebe que com dois ou três copos no bucho, a menina gordinha, que quase não se dava por ela, até canta. E até canta mesmo umas coisas. Quando abre a goela, as paredes tremem e só as pedras da calçada não ficam de pelos eriçados ao ouvi-la. (Mesmo sabendo que no Texas não há pedras da calçada). É então que a menina começa a ir a bares de karaoke cantar. Depois passa a cantar acompanhada à guitarra. Entretanto, com os amigos da música, forma uma banda. Todos os fins de semana vai cantar em bares dos arredores da cidade universitária. Chegam as primeiras notas ganhas com o seu trabalho. O curso vai ficando para trás... Lá na Terra dela, no Texas, começa a ser falada. Na igreja o pastor relata o seu caso como exemplo para os pais terem mais cuidado com a liberdade que dão aos filhos. Mas a Janis Lyn não ouviu o pastor e continua o seu percurso de artista. Muda-se para San Francisco. Canta e liberta-se. Pelo menos faz por se libertar. A relação com a família descamba completamente. Quando vai tentar reconciliar-se com os seus, estes recusam a entrada na sua própria casa. Vai para um hotel na sua própria cidade. Embebeda-se, chora e canta. No dia seguinte, corta definitivamente com os pais e com o Texas. Vieram os amores, correspondidos, não correspondidos, doces, azedos e ácidos, alguns muito ácidos. Uma fuga para a frente com uma gravidez indesejada. A opção de abortar era a única saída, foi tirar ao México, em Tijuana. Volta a tempo de continuar a cantar. É preciso pagar a renda. No camarim cai, desmaia e não é do álcool. Internamento por hemorragia. Os jornais a falarem do caso. E ela a cantar para pagar as contas. No Texas tudo se sabe. Os copos, as passas, os namorados, as namoradas, o aborto e as camisas largas sem soutien. Tudo é analisado e pesado na balança do povo que é juiz permanente das causas dos outros. E ela continua a cantar. E a vender discos. O sucesso nacional da Janis é visto naquela cidade onde nasceu como uma ofensa pessoal e um atestado de burrice crónica a cada um e todos os habitantes. Dói-lhes o sucesso dela. E ela a cantar. A ansiedade e o medo deram lugar a uma depressão profunda. Compensa com ervas exóticas, copos e amores mais ou menos livres. A educação religiosa e conservadora deixou marcas profundas no sentimento da culpa, sempre presente. Continua a cantar e continua a beber. Para não beber em seco, acompanha o álcool com comprimidos, speed e umas tripezinhas daquele LSD bom que se fazia na altura. E vá de cantar. Sempre a cantar. Começa também a decorar as veias dos braços com furinhos feitos com agulha presa a uma seringa. Aparece sorridente nas fotografias e a dieta líquida que tem feito, tirou-lhe peso. Os discos dela vendem-se bem. Vendem-se bem em todo o lado, menos lá na terra dela do Texas. Cheira um risquinho de coca antes de subir ao palco, só para ter energia para cantar. Quando acaba o trabalho, dá um piquinho de cavalo só para poder ter um bocado de paz e poder descansar. Porque, na sua essência é uma mulher conservadora, não abandona o seu velho e primeiro amor: o álcool. E os gajos que fazem discos a faturar à conta da voz da Janis Lyn. Curiosamente, ou talvez nem tanto, a canção que a levou ao estrelado chama-se, literalmente, "um pedaço do seu coração". Passou em todas as rádios com uma Janis Lyn já sem voz a implorar para que todos tirassem um bocado do seu coração!!! E todos tiraram. Até para vender calças de ganga serviu. Todos gostam da voz dela a esvair-se em copos, seringas e amor mal-feito atrás do palco. Todos todos não, todos, menos aquela malta lá da terra dela no Texas. Em 1970, de tanto se dar, o coração da Janis Lyn deixou de bater. Muitos lamentaram. E aquela malta lá da terra dela do Texas, consternada, teve finalmente oportunidade para dizer: --- Sempre a achei esquisita, desde miúda... via-se logo que não acabava bem!