Campinas foi um povoado que nasceu na
beira da estrada e cresceu com o café. Da segunda metade do século
XIX até depois da primeira guerra mundial, viveu-se a loucura e a
bebedeira do dinheiro que chegava do café. Mas por cada agricultor
que se tornou rico a produção de café, contam-se os muitos que
morreram na miséria a tentar que isso acontecesse!
Com a grande crise do capitalismo de
1929, os preços do café caíram. Dois ou três maus anos agrícolas
com a geada a desfolhar as plantas fez baixar a produção. Os
agricultores que investiram tudo o que tinham a plantar e a fazer
contas com o que se ganhava nos tempos da guerra, viram-se
confrontados com a dura realidade de terem todos os
credores do mundo e meia dúzia de mirrados grãos de café de baixa
qualidade e desvalorizado na mão. Mas são assim os negócios...
Uns anos antes antes da grande crise,
no dia 8 de maio de 1911, numa família de agricultores com vocação
para serem ricos, mas sem o dinheiro necessário para que isso
acontecesse, nasceu Maria Jandira. Maria que é nome de santa, Jandira, porque a mãe
gostava. Tinha um outro sobrenome diferente do “dos Santos” com
que o povo a batizou.
Jandira cresceu naquele ambiente
pequeno burguês de provincia onde a hipocrisia dos católicos e o
moralismo dos protestantes dão as mãos para estrangular todo e
qualquer resquício de liberdade e espontaneidade. Cresceu como
menina de boas famílias e foi educada para um dia vir a ser uma
senhora casada. Mas a crise cortou-se as voltas. Aos dezoito anos, a
família da Jandira estava na miséria e o casamento esperado
desvalorizou-se como os grãos de café que o pai tinha para vender e
não vendeu.
As dívidas contraídas pela família a
crescerem e a necessidade de trabalhar empurrava todos os que viviam
naquela casa para a rua. Na mercearia a conta crescia e o merceeiro
veio falar com o pai da Jandira. A rapariga enquanto o pai falava com
o portugues, fez contas à vida: casar com o merceeiro
transmontano a cheirar a suor e a cebola, vinte anos mais velho ou
fugir para ir ter com o Carlinhos que era um moço lindo de fama
feia, mas de boas famílias. O moço era um bocadinho estroina, mas lindo e já lhe tinha
jurado eterno amor... A Jandira não hesitou, abriu a janela e voou.
Não voou muito, afinal de contas
morava no rés do chão. Bateu as asas até à casa do namorado e do bairro de casas abastadas no subúrbio
onde ainda vivia o Carlinhos até a Rua Visconde de Rio Branco, é um
passeio que se faz bem numa noite quente. O rapaz não podia deitar a
Jandira na casa da família... e por isso levou-a para a pensão que
conhecia, ali entre os bairros de Botafogo e Conceição, no centro
de Campinas.
Depois de fazerem o amor que precisavam
ambos de fazer, do qual a Jandira estava mais necessitada, diga-se por ser verdade, depois de terem dormido juntos o que restava da madrugada... Carlinhos saiu pensativo. No caminho, enquanto a cidade acordava, preparou a conversa que tinha que ter no dia seguinte. Que iam ser muito felizes juntos, é bom de ver. Que eram
feitos um para o outro. Mas que não estava ainda preparado para
avançar para um casamento. Que a amava, claro, que se casava com
ela, de certeza, que era um grande amor... Mas faltava o dote, para
iniciarem a vida. Que ela ia ter de ajudar. Que com uma certa quantia
de dinheiro, podiam ser muito felizes. Que depois de juntarem o
dinheiro iam juntos para o Rio. Que os quinhentos quilômetros que
separavam Jandira do Rio de Janeiro eram suficientes para deixar para
trás todo o passado. Que iam ter filhos e ser muito felizes. Mas que
agora era preciso o sacrifício do trabalho duro.
A Jandira não estava a perceber. Mas
depressa percebeu. Com a ajuda do Carlinhos e os esclarecimentos da
Dona Laudelina, mulher experiente em gerir o negócio do amor vendido, compreendeu. Ensinaram-lhe tudo: como trabalhar e
sobreviver aquele trabalho. Afinal de contas era assim que viviam o
resto das moças que moravam na pensão da Dona Lau para o onde o Carlinhos a
tinha levado.
O meretrício não se faz por vocação,
mas por disciplina. Enquanto disciplinadamente a Jandira juntava
dinheiro para o casamento, o Carlinhos ia fazendo negócios. A comprar
casas a famílias na miséria e transformar em alojamentos para os
imigrantes que vinham chegando. Um empreendedor. Ao fim do dia vinha
dormir a pensão e fazer contas com a Jandira. Ela dava-lhe as notas
e ele pagava-lhe em amor e em sonhos que é quase a mesma coisa. As
outras meninas que se prostituíam ali, sonhavam e fantasiavam com um
amor e um noivado como o do Carlinhos e da Jan. As amigas e colegas
de cruz, costuraram-lhe um vestido de noiva lindo que a Jan
experimentava as escondidas para que o Carlinhos não visse e não
atraísse o azar e a tragédia sobre aquele amor tão puro.
Mas a tragédia aconteceu à mesma. Como todas as grandes tragédias, aconteceu sem se esperar. Ou pelo
menos sem a Maria Jandira esperar.
O Carlinhos, que apesar dos hábitos de
malandro até era de boas famílias, e que agora já tinha algum
dinheiro, inesperadamente anunciou noivado com uma pindérica do
interior. Com filha de um produtor de café, daqueles que ainda ficou
mais rico com a crise. As coisas são o que são e um homem de negócios tem de ser pragmático. O Carlinhos, prestes a tornar-se o Senhora Carlos acabou tudo com a
Jandira. Dói, mas tem de ser.
Os gritos da moça rejeitada ouviram-se ao longe. O seu pranto inundou o
centro de Campinas.
Mas não houve volte atrás. O Carlos meteu o chapéu, bateu a porta e saiu definitivamente.
Enlouquecida pela dor, sem ser capaz de
suportar a rejeição, a Jan fechou-se no seu quarto, vestiu o
vestido de noiva, pôs na cabeça grinalda branca e
canonizou-se santa, mesmo sem o aval do papa. Deitada, despejou o
conteúdo de dois candeeiros a petróleo sobre ela e sobre o vestido.
Quando o combustível ensopou a roupa da cama e a palha do colchão,
acendeu um fósforo.
Maria Jandira morreu vestida de noiva. Tinha
vinte e três anos. Foi no dia 24 de Maio de 1934.
As chamas do incêndio no quarto da
Jandira, iluminaram toda a cidade de Campinas.
A familia demasiado hipocritica para
assumir a pobreza que a levou à prostituição, não
veio reclamar o que restava do corpo. Foram as prostitutas e os
malandros da baixa que trataram do velório. Do quarto queimado,
resgataram a unica fotogradia de Jandira que puseram na campa.
Mas desenganem-se os que pensam que a
Jandira descansou nesse momento.
Primeiro foram as amigas e colegas de
profissão que começaram com a romaria à campa. Para confidências
de amor e fazer pedidos. Depois começaram vir outras moças,
também meretrizes de outros sítios. Vieram moças de família
também. A campa da Jandira tornou-se local de culto.
Nos últimos oitenta e seis anos, a
fama tem crescido.
Ainda hoje, todos os dias chegam cartas ao
cemitério da Saudade, na praça Voluntários. Vem dirigidas a
Jandira. Chamaram-se Maria Jandira dos Santos. Dos Santos, porque
dizem que a Jandira faz milagres. Sobretudo ajuda aos que sofrem de
amores. Trazem-lhe flores, pulseiras, perfumes, velas e cartas com
pedidos. Muitos muitos pedidos. A Jandira, disciplinadamente, faz o
que pode.