Quase até ao limiar do seculo XX. Depois não. Depois tudo foi diferente.
Ou não tanto.
As estrelas, os deuses e as marés alinharam-se para que na segunda feira de carnaval do ano mágico de 1917 nascesse a Dora Vivacqua. Assim foi!
Nasceu a menina, no Ano da Serpente, no penúltimo dia do Aquário e naquela segunda-feira que sendo segunda mais parece todo um fim de semana. Precisamente nesse dia . Nasceu menina de gente importante lá na terra. Foi a decima quinta filha de um rico proprietário rural, neta de ricos proprietários rurais e irmã de destacados advogados e políticos locais, estaduais e federais. Apesar de toda esta carga genética para ser mais uma menina de elite que se tornaria numa esposa da alta burguesia e mãe de gente importante... a Dora cortou as voltas ao destino e desde muito pequena que decidiu ser quem ela era e não quem os outros queriam que ela fosse.
Na infância era conhecida por rebelde. Os irmãos e irmãs mais velhos achavam piadinha à menina refilona. Depois na adolescência, no inicio dos anos trinta, as irmãs e os irmãos foram deixando de achar tanta piada, à menina mais nova da família, quando provocava ostensivamente e afastava com a sua ousadia rapazes que seriam potenciais noivos.
Aos pais e irmãos, esclareceu que não se queria casar. Foi estudar dança para o rio de Janeiro. Estudou e aprendeu a dançar. Não pediu autorização a ninguém e apresentou-se publicamente como bailarina. A família, alertada por cartas dos pequenos escândalos que aquele furacao Dora ia causando, ameaçou tirar-lhe a mesada. A Dora, mandou-os meter a mesada onde o sol não brilha e começou a aturar dançando quase nua, triplicando assim o seu salário.
A família católica e conservadora elaborou um plano que termina num internamento psiquiatrico. A reclusão dura poucos meses. A Dora não sofria de nenhuma doença. A Dora queria e era apenas ela mesmo.
Quando a Dora saiu, saiu mais confiante em si mesma e nas suas verdades.
Criou um espetáculo para si mesma, coreografando a sua própria dança. Apresentava-se dançando com adereços exóticos e com as suas duas pitons, que eram simultaneamente os seus animais de estimação, as suas parceiras no palco e quase sempre as únicas peças de roupa que vestia.
Em 1944, em plena segunda guerra mundial, apresentou-se no no Circo Pavilhão Azul. Apareceu nua em palco. Cumpriu prisão e pagou multa por atentado ao pudor. Escreveram-se rios de tinta e o escândalo apareceu em todos os jornais. O espetáculo fez um enorme sucesso. Ninguém ficou indiferente. Muito menos os familiares ricos, nomeadamente os seus catorze irmãos.
Por estes anos os seus amigos, companheiros e parceiros de trabalho e cama eram pessoas do circo.
Terá sido o palhaço Cascud o de quem foi íntima que lhe sugeriu o nome artístico Luz del Fuego.Luz del Fuego era tambem o nome de um baton argentino que todas as mulheres brasileiras queriam ter... e que todos os homens queriam beijar... O nome pegou bem. Pegou fogo.
A família possessa fazia tudo para lhe cortar a ousadia e a liberdade de ser quem queria ser. Mas aquela pobre menina rica, nem mesmo mudando de nome conseguia fugir à maldição do conservadorismo das elites sul-americanas. Prepararam-lhe outra armadilha. Numa tentativa de reconciliação familiar, a que a Dora ingenuamente vai, reage com violência as provocações de um dos irmãos e atira-lhe com um cinzeiro à cabeça. O medico psiquiatra pago pelos irmãos já está a postos na sala ao lado e todos testemunham que a Dora se tornou violenta e furiosa. Mais uns meses de internamento, mais tratamentos compulsivos de comprimidos e terapias que não precisa. Debilitada fisicamente, mas completamente dona de si, acaba por sair.
Em 1947, escreveu um romance autobiográfico “Trágico Black-Out”. Assina como Luz del Fuego e critica a hipocrisia dos casamentos convencionais, o machismo e a arrongancia publica e impotencia privada. Fala abertamente de sexualidade e detalhamento de alguma práticas. Dá uma visão feminina e feminista. Um dos irmãos, o Senador Atílio Vivacqua, tentou comprar todos os exemplares editados do livro para poder queimar aquelas paginas que faziam arder o que ele acreditava ser o seu bom-nome.
Gostou tanto de escrever como de dançar. E uma vez que o seu primeiro livro foi aquele sucesso que esgotou todas e quaisquer edições, no ano seguinte, em 1949, publicou seu segundo romance, “A verdade nua”. Mais escândalos e mais sucesso. É nesta altura, no inicio nos anos cinquenta que começa a defender o naturismo.
Nos anos cinquenta é uma revolucionaria dos costumes mantendo as ligações às elites. Defende o direito ao divorcio, o direito ao amor livre, o direito ao naturismo. Luta contra o conservadorismo idiota e hipócrita de um brasil economicamente modernizado e culturalmente subdesenvolvido.
Mulher de grande inteligência e cultura mantinha as relações necessárias com o poder instituído naquela democracia do mais ou menos faz de conta. Tera começado por ameaçar criar um partido politico que defendia o naturismo e o amor livre... Os jornais dão-lhe visibilidade. Percebe que causa medo na classe politica. Vai falar pessoalmente com o Ministro da Guerra, um conhecido seu que lhe devia favores e informa-o da sua intenção de entrar na politica. Quando a conversa acaba, a Marinha do Brasil tinha cedida à Luz del Fuego uma ilha onde a artista faria as suas experiencias artísticas e sociais e em compensação a Luz del Fuego não ia entrar na politica, nem criar partidos nem falar com oposicionistas.
A Dora, no seu jeito frontal e desbocado, conseguiu a concessão da ilha Tapuama de Dentro, localizada próxima de Paquetá, na baía de Guanabara. O lugar, rebatizado como Ilha do Sol. Fez o primeiro clube naturista da América Latina. Em 1960, na ilha da Luz del Fuego, algumas das estrelas de Hollywood passeavam nuas enquanto bebiam agua de coco. Entre as estrelas, a mais bela das estrelas nuas, a própria Dora.
Só que os anos sessenta no Brasil acabaram em 1964. A chegada ao poder dos militares e a criação da ditadura apodreceu o brasil por dentro. O Clube de Dora foi encerrado. Da ilha paradisíaca fizeram-lhe uma prisão domiciliaria, onde a Dora podia andar sem roupas, podia estar, mas não podia sair. Foram anos tristes para a Dora. Num relatório da policia politica diz que “ela vive sem roupa e pernoite e fornica com o seu caseiro mestiço”. Assim descrevem e pensam os militares que raptaram a liberdade.
Mas a Luz del Fuego pelo simples facto de existir, continuava a incomodar muito as elites brancas e conservadores.
No dia 19 de no dia 19 de julho de 1967 a Dora Vivacqua e seu caseiro foram assassinados. Morta com golpes de remo, seu corpo foi esfaqueado, amarrado a pedras e atirado ao mar. A ditadura prende e condena dois pescadores pelos horrendos crimes. Os jornais continuam a faturar a sua conta.
Naturalmente que os militares no governo, tiveram mão de aço a punir os pescadores. Encontraram um culpado mestiço e pobre que foi fácil de condenar, uma vez que não podiam julgar-se nem a eles mesmo, nem condenar toda uma classe de idiotas e hipócritas conservadores que publicamente criticavam e em privado desejavam o fogo daquele mulher de Luz.