domingo, 13 de dezembro de 2020

Luz del Fuego


Em Itapemirim as casas antigas foram construídas com as pedras do lastro dos navios. Os barcos primeiro vieram carregados com pessoas escravizadas, depois partiram carregados de cana de açúcar, e mais tarde de café. Pelo meio trouxeram pedras nos porões para equilibrar nas manoras. Foi em Itapemirim que os escravocratas se revoltaram contra a lei que abulia a escravatura. E foi em Itapemirim que os escravizados ainda que ilegalmente tiveram que se revoltar contra a sua condição e mais uma vez foram esmagados com um banho de sangue e lama, em que soldados e fazendeiros organizaram caça aos trabalhadores que se recusavam a serem tratados como escravos... caçadas essas que terminavam invariavelmente em execução após tortura. Aconteceu massivamente.

Quase até ao limiar do seculo XX. Depois não. Depois tudo foi diferente. 

Ou não tanto.

As estrelas, os deuses e as marés alinharam-se para que na segunda feira de carnaval do ano mágico de 1917 nascesse a Dora Vivacqua. Assim foi!

Nasceu a menina, no Ano da Serpente, no penúltimo dia do Aquário e naquela segunda-feira que sendo segunda mais parece todo um fim de semana. Precisamente nesse dia . Nasceu menina de gente importante lá na terra. Foi a decima quinta filha de um rico proprietário rural, neta de ricos proprietários rurais e irmã de destacados advogados e políticos locais, estaduais e federais. Apesar de toda esta carga genética para ser mais uma menina de elite que se tornaria numa esposa da alta burguesia e mãe de gente importante... a Dora cortou as voltas ao destino e desde muito pequena que decidiu ser quem ela era e não quem os outros queriam que ela fosse.

Na infância era conhecida por rebelde. Os irmãos e irmãs mais velhos achavam piadinha à menina refilona. Depois na adolescência, no inicio dos anos trinta, as irmãs e os irmãos foram deixando de achar tanta piada, à menina mais nova da família, quando provocava ostensivamente e afastava com a sua ousadia rapazes que seriam potenciais noivos.

Aos pais e irmãos, esclareceu que não se queria casar. Foi estudar dança para o rio de Janeiro. Estudou e aprendeu a dançar. Não pediu autorização a ninguém e apresentou-se publicamente como bailarina. A família, alertada por cartas dos pequenos escândalos que aquele furacao Dora ia causando, ameaçou tirar-lhe a mesada. A Dora, mandou-os meter a mesada onde o sol não brilha e começou a aturar dançando quase nua, triplicando assim o seu salário.

A família católica e conservadora elaborou um plano que termina num internamento psiquiatrico. A reclusão dura poucos meses. A Dora não sofria de nenhuma doença. A Dora queria e era apenas ela mesmo.

Quando a Dora saiu, saiu mais confiante em si mesma e nas suas verdades.

Criou um espetáculo para si mesma, coreografando a sua própria dança. Apresentava-se dançando com adereços exóticos e com as suas duas pitons, que eram simultaneamente os seus animais de estimação, as suas parceiras no palco e quase sempre as únicas peças de roupa que vestia.

Em 1944, em plena segunda guerra mundial, apresentou-se no no Circo Pavilhão Azul. Apareceu nua em palco. Cumpriu prisão e pagou multa por atentado ao pudor. Escreveram-se rios de tinta e o escândalo apareceu em todos os jornais. O espetáculo fez um enorme sucesso. Ninguém ficou indiferente. Muito menos os familiares ricos, nomeadamente os seus catorze irmãos.

Por estes anos os seus amigos, companheiros e parceiros de trabalho e cama eram pessoas do circo.

Terá sido o palhaço Cascud o de quem foi íntima que lhe sugeriu o nome artístico Luz del Fuego.Luz del Fuego era tambem o nome de um baton argentino que todas as mulheres brasileiras queriam ter... e que todos os homens queriam beijar... O nome pegou bem. Pegou fogo.

A família possessa fazia tudo para lhe cortar a ousadia e a liberdade de ser quem queria ser. Mas aquela pobre menina rica, nem mesmo mudando de nome conseguia fugir à maldição do conservadorismo das elites sul-americanas. Prepararam-lhe  outra armadilha. Numa tentativa de reconciliação familiar, a que a Dora ingenuamente vai, reage com violência as provocações de um dos irmãos e atira-lhe com um cinzeiro à cabeça. O medico psiquiatra pago pelos irmãos já está a postos na sala ao lado e todos testemunham que a Dora se tornou violenta e furiosa. Mais uns meses de internamento, mais tratamentos compulsivos de comprimidos e terapias que não precisa. Debilitada fisicamente, mas completamente dona de si, acaba por sair.

Em 1947, escreveu um romance autobiográfico “Trágico Black-Out”. Assina como Luz del Fuego e critica a hipocrisia dos casamentos convencionais, o machismo e a arrongancia publica e impotencia privada. Fala abertamente de sexualidade e detalhamento de alguma práticas. Dá uma visão feminina e feminista. Um dos irmãos, o Senador Atílio Vivacqua, tentou comprar todos os exemplares editados do livro para poder queimar aquelas paginas que faziam arder o que ele acreditava ser o seu bom-nome.

Gostou tanto de escrever como de dançar. E uma vez que o seu primeiro livro foi aquele sucesso que esgotou todas e quaisquer edições, no ano seguinte, em 1949, publicou seu segundo romance, “A verdade nua”. Mais escândalos e mais sucesso. É nesta altura, no inicio nos anos cinquenta que começa a defender o naturismo.

Nos anos cinquenta é uma revolucionaria dos costumes mantendo as ligações às elites. Defende o direito ao divorcio, o direito ao amor livre, o direito ao naturismo. Luta contra o conservadorismo idiota e hipócrita de um brasil economicamente modernizado e culturalmente subdesenvolvido.

Mulher de grande inteligência e cultura mantinha as relações necessárias com o poder instituído naquela democracia do mais ou menos faz de conta. Tera começado por ameaçar criar um partido politico que defendia o naturismo e o amor livre... Os jornais dão-lhe visibilidade. Percebe que causa medo na classe politica. Vai falar pessoalmente com o Ministro da Guerra, um conhecido seu que lhe devia favores e informa-o da sua intenção de entrar na politica. Quando a conversa acaba, a Marinha do Brasil tinha cedida à Luz del Fuego uma ilha onde a artista faria as suas experiencias artísticas e sociais e em compensação a Luz del Fuego não ia entrar na politica, nem criar partidos nem falar com oposicionistas.

A Dora, no seu jeito frontal e desbocado, conseguiu a concessão da ilha Tapuama de Dentro, localizada próxima de Paquetá, na baía de Guanabara. O lugar, rebatizado como Ilha do Sol. Fez o primeiro clube naturista da América Latina. Em 1960, na ilha da Luz del Fuego, algumas das estrelas de Hollywood passeavam nuas enquanto bebiam agua de coco. Entre as estrelas, a mais bela das estrelas nuas, a própria Dora.

Só que os anos sessenta no Brasil acabaram em 1964.  A chegada ao poder dos militares e a criação da ditadura apodreceu o brasil por dentro.  O Clube de Dora foi encerrado. Da ilha paradisíaca fizeram-lhe uma prisão domiciliaria, onde a Dora podia andar sem roupas, podia estar, mas não podia sair. Foram anos tristes para a Dora. Num relatório da policia politica diz que “ela vive sem roupa e pernoite e fornica com o seu caseiro mestiço”. Assim descrevem e pensam os militares que raptaram a liberdade.

Mas a Luz del Fuego pelo simples facto de existir, continuava a incomodar muito as elites brancas e conservadores. 

No dia 19 de no dia 19 de julho de 1967 a Dora Vivacqua e seu caseiro foram assassinados. Morta com golpes de remo, seu corpo foi esfaqueado, amarrado a pedras e atirado ao mar. A ditadura prende e condena dois pescadores pelos horrendos crimes. Os jornais continuam a faturar a sua conta. 

Naturalmente que os militares no governo, tiveram mão de aço a punir os pescadores. Encontraram um culpado mestiço e pobre que foi fácil de condenar, uma vez que não podiam julgar-se nem a eles mesmo, nem condenar toda uma classe de idiotas e hipócritas conservadores que publicamente criticavam e em privado desejavam o fogo daquele mulher de Luz.