sábado, 14 de novembro de 2020

Santa Jandira do Meretrício da Saudade


Campinas foi um povoado que nasceu na beira da estrada e cresceu com o café. Da segunda metade do século XIX até depois da primeira guerra mundial, viveu-se a loucura e a bebedeira do dinheiro que chegava do café. Mas por cada agricultor que se tornou rico a produção de café, contam-se os muitos que morreram na miséria a tentar que isso acontecesse!

Com a grande crise do capitalismo de 1929, os preços do café caíram. Dois ou três maus anos agrícolas com a geada a desfolhar as plantas fez baixar a produção. Os agricultores que investiram tudo o que tinham a plantar e a fazer contas com o que se ganhava nos tempos da guerra, viram-se confrontados com a dura realidade de terem  todos os credores do mundo e meia dúzia de mirrados grãos de café de baixa qualidade e desvalorizado na mão. Mas são assim os negócios...

Uns anos antes antes da grande crise, no dia 8 de maio de 1911, numa família de agricultores com vocação para serem ricos, mas sem o dinheiro necessário para que isso acontecesse, nasceu Maria Jandira. Maria que é nome de santa, Jandira, porque a mãe gostava. Tinha um outro sobrenome diferente do “dos Santos” com que o povo a batizou.

Jandira cresceu naquele ambiente pequeno burguês de provincia onde a hipocrisia dos católicos e o moralismo dos protestantes dão as mãos para estrangular todo e qualquer resquício de liberdade e espontaneidade. Cresceu como menina de boas famílias e foi educada para um dia vir a ser uma senhora casada. Mas a crise cortou-se as voltas. Aos dezoito anos, a família da Jandira estava na miséria e o casamento esperado desvalorizou-se como os grãos de café que o pai tinha para vender e não vendeu.

As dívidas contraídas pela família a crescerem e a necessidade de trabalhar empurrava todos os que viviam naquela casa para a rua. Na mercearia a conta crescia e o merceeiro veio falar com o pai da Jandira. A rapariga enquanto o pai falava com o portugues, fez contas à vida: casar com o merceeiro transmontano a cheirar a suor e a cebola, vinte anos mais velho ou fugir para ir ter com o Carlinhos que era um moço lindo de fama feia, mas de boas famílias. O moço era um bocadinho estroina, mas lindo e já lhe tinha jurado eterno amor... A Jandira não hesitou, abriu a janela e voou.

Não voou muito, afinal de contas morava no rés do chão. Bateu as asas até à casa do namorado e do bairro de casas abastadas no subúrbio onde ainda vivia o Carlinhos até a Rua Visconde de Rio Branco, é um passeio que se faz bem numa noite quente. O rapaz não podia deitar a Jandira na casa da família... e por isso levou-a para a pensão que conhecia, ali entre os bairros de Botafogo e Conceição, no centro de Campinas.

Depois de fazerem o amor que precisavam ambos de fazer, do qual a Jandira estava mais necessitada, diga-se por ser verdade, depois de terem dormido juntos o que restava da madrugada... Carlinhos saiu pensativo. No caminho, enquanto a cidade acordava,  preparou a conversa que tinha que ter no dia seguinte. Que iam ser muito felizes juntos, é bom de ver. Que eram feitos um para o outro. Mas que não estava ainda preparado para avançar para um casamento. Que a amava, claro, que se casava com ela, de certeza, que era um grande amor... Mas faltava o dote, para iniciarem a vida. Que ela ia ter de ajudar. Que com uma certa quantia de dinheiro, podiam ser muito felizes. Que depois de juntarem o dinheiro iam juntos para o Rio. Que os quinhentos quilômetros que separavam Jandira do Rio de Janeiro eram suficientes para deixar para trás todo o passado. Que iam ter filhos e ser muito felizes. Mas que agora era preciso o sacrifício do trabalho duro.

A Jandira não estava a perceber. Mas depressa percebeu. Com a ajuda do Carlinhos e os esclarecimentos da Dona Laudelina, mulher experiente em gerir o negócio do amor vendido, compreendeu. Ensinaram-lhe tudo: como trabalhar e sobreviver aquele trabalho. Afinal de contas era assim que viviam o resto das moças que moravam na pensão da Dona Lau para o onde o Carlinhos a tinha levado.

O meretrício não se faz por vocação, mas por disciplina. Enquanto disciplinadamente a Jandira juntava dinheiro para o casamento, o Carlinhos ia fazendo negócios. A comprar casas a famílias na miséria e transformar em alojamentos para os imigrantes que vinham chegando. Um empreendedor. Ao fim do dia vinha dormir a pensão e fazer contas com a Jandira. Ela dava-lhe as notas e ele pagava-lhe em amor e em sonhos que é quase a mesma coisa. As outras meninas que se prostituíam ali, sonhavam e fantasiavam com um amor e um noivado como o do Carlinhos e da Jan. As amigas e colegas de cruz, costuraram-lhe um vestido de noiva lindo que a Jan experimentava as escondidas para que o Carlinhos não visse e não atraísse o azar e a tragédia sobre aquele amor tão puro.

Mas a tragédia aconteceu à mesma. Como todas as grandes tragédias, aconteceu sem se esperar. Ou pelo menos sem a Maria Jandira esperar.

O Carlinhos, que apesar dos hábitos de malandro até era de boas famílias, e que agora já tinha algum dinheiro, inesperadamente anunciou noivado com uma pindérica do interior. Com filha de um produtor de café, daqueles que ainda ficou mais rico com a crise. As coisas são o que são e um homem de negócios tem de ser pragmático.  O Carlinhos, prestes a tornar-se o Senhora Carlos  acabou tudo com a Jandira. Dói, mas tem de ser. 

Os gritos da moça rejeitada ouviram-se ao longe. O seu pranto inundou o centro de Campinas.

Mas não houve volte atrás. O Carlos meteu o chapéu, bateu a porta e saiu definitivamente. 

Enlouquecida pela dor, sem ser capaz de suportar a rejeição, a Jan fechou-se no seu quarto, vestiu o vestido de noiva, pôs na cabeça  grinalda branca e canonizou-se santa, mesmo sem o aval do papa. Deitada, despejou o conteúdo de dois candeeiros a petróleo sobre ela e sobre o vestido. Quando o combustível ensopou a roupa da cama e a palha do colchão, acendeu um fósforo. 

Maria Jandira morreu vestida de noiva. Tinha vinte e três anos.  Foi no dia 24 de Maio de 1934.

As chamas do incêndio no quarto da Jandira, iluminaram toda a cidade de Campinas.

A familia demasiado hipocritica para assumir a pobreza que a levou à prostituição,  não veio reclamar o que restava do corpo. Foram as prostitutas e os malandros da baixa que trataram do velório. Do quarto queimado, resgataram a unica fotogradia de Jandira que puseram na campa.

Mas desenganem-se os que pensam que a Jandira descansou nesse momento.

Primeiro foram as amigas e colegas de profissão que começaram com a romaria à campa. Para confidências de amor e fazer pedidos.  Depois começaram vir outras moças, também meretrizes de outros sítios. Vieram moças de família também. A campa da Jandira tornou-se local de culto. 

Nos últimos oitenta e seis anos, a fama tem crescido. 

Ainda hoje, todos os dias chegam cartas ao cemitério da Saudade, na praça Voluntários. Vem dirigidas a Jandira. Chamaram-se Maria Jandira dos Santos. Dos Santos, porque dizem que a Jandira faz milagres. Sobretudo ajuda aos que sofrem de amores. Trazem-lhe flores, pulseiras, perfumes, velas e cartas com pedidos. Muitos muitos pedidos. A Jandira, disciplinadamente, faz o que pode.