sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

Ana Loura – O Corno da Vaca

 


Na segunda metade do século XIX, na em plena zona de Saloia, na aldeia do Casal das Neves, na extrema do concelho de Vila Franca de Xira, já próximo da Vila de Arruda dos Vinhos, viveu e trabalhou a Ana Loura.

A Ana, apesar de ser Loura de nome, era morena de pele e generosa nas formas. Teve vinte e uma vezes grávida, pariu dezanove crianças das quais dezasseis chegaram à idade adulta.
Sabemos dela através do que o Dr Tito deixou escrito. O Tito que além de ser médico era um homem de cultura e saber, dedicava-se à antropologia. Antes de ser delegado de saúde em Arruda dos Vinhos, foi médico em Alcoutim no início dos anos 80 do século XIX. Tinha um nome pomposo: Tito Bourbon e Noronha mas era um homem simples. Exerceu a profissão de médico durante mais de cinquenta anos, aposentou-se por limite de idade nos anos trinta do século XX. Escritor compulsivo, guardou em diários o registo do seu trabalho. Ajudou em 301 partos, tratou 1012 cabeças partidas, mais de quinhentas por agressão, algumas com fracturas de crânio. Um número interminável de maleitas várias. Recebeu da Direcção-Geral de Saúde um atestado de louvor. Percorria as serras a cavalo, por montes e serras, sempre diligente. São inúmeros os registos de situações em que abandonou as refeições, as festas, serões nas colectividades ou as touradas a que assistia para ir atender doentes. Muitas vezes gente humilde que não tinha com que lhe pagar. 
Morreu em Lisboa em 1946 com quase noventa anos e foi sepultado no cemitério de Arruda.

Foi o Dr Tito quem nos deixou nos seus diários, o registo da vida da Ana Loura. Terá sido ainda no final do século XIX que se conheceram. O Dr. Tito ajudou a Ana a parir o seu décimo sexto filho --  uma menina. Um parto complicado. Foi a própria Ana quem mandou chamar o médico que a ferros lhe tirou a criança e lhe salvou a vida. A Ana agradecida partilhou com o médico os segredos da sua profissão, que a bem ver era a mesma que a do Tito. Também a Ana, curava e ajudava pessoas em situações de aperto. A Ana Loura foi bruxa. Bruxa como a sua mãe e bruxa como o viriam a ser as suas filhas e netas.

Entre o médico e a bruxa durou uma improvável amizade de várias decadas, baseada na partilha de conhecimentos. O Tito ia ter com a Ana e apontava o que ela dizia nos caderninhos dele. A Ana, por seu lado, aprendia com o Tito procedimentos terapêuticos que não necessitavam de rezas nem de esconjuras, mas que de qualquer forma ela própria acrescentava para os tornar mais eficazes.

Antes de ser chamado ao parto da Ana, o Tito já tinha ouvido falar na Bruxa. Era a Ana Loura a sua principal concorrente. Várias vezes se surpreendeu com curas e reclamações entre os seus doentes que não tomavam a medicação prescrita que por falta de dinheiro ou sovinice, preferiam os tratamentos da bruxa Ana. 

A Ana também já tinha ouvido falar no Dr. Tito e mesmo sem o conhecer já o admirava pela fama de gente boa que ele deixava entre os pobres daqueles desolados campos.

Nos jornais locais e nos círculos intelectuais de Vila Franca a Lisboa, a quem o quisesse ouvir, o Dr. Tito falava e escrevia sobre a Bruxa da Arruda elogiosas palavras caras, palavras de médico letrado. O médico aumentava a fama da bruxa entre os letrados, a bruxa louvava o médico entre os humildes.

A Bruxa Ana, também agradecia a publicidade ao médico com aprovadíssimos coelhos bravos cozinhados em ervas e vinhos que o seu homem apanhava em armadilhas de laço. O Tito assistiu assim ao crescimento da família e à formação das quatro filhas que se tornaram também elas bruxas.

Em 1906, o moderníssimo Diário de Notícias, publica uma reportagem sobre a Bruxa da Arruda. O repórter vai a arruda dos vinhos em registo de aventura como uma expedição a um local remoto e atrasado que era de facto.

A peça jornalística, é tendenciosa e venenosa. Pinta curandeira Ana Loura como uma mulher rude e rica que vive de enganar as pessoas.

A realidade era diferente. Em 1906, dos dezasseis filhos criados todos trabalhavam. O Marido da Ana era agricultor no minifúndio, e trabalhava do nascer do sol até à noite cerrada. A Ana que nessa altura teria os seus quarenta e oito, além de cuidar da numerosa família, trabalhava na quinta, tratava das ovelhas e duas vezes por semana ia vender os queijos que fazia ao mercado...E claro, a sua condição de bruxa impunha que atendesse quem a procurava e aos dias em que atendia, ia bastante gente.

Mas o DN mandou um repórter temido pelo veneno com que escrevia. Um tipo relativamente novo, mas que tinha tanto de ambicioso como de repelente.

O tal jornalista, terá usado o nome do Dr Tito para ser recebido pela Ana. Mas quando passou pela Arruda nem sequer foi cumprimentar o médico. Foi direto à casa onde lhe disseram que vivia a bruxa.

A humilde sala, cheia de gente à espera para ser atendida...e aquele pedante de Lisboa a chegar cagando superioridade na pose, no olhar e no andar.

A Ana Loura percebeu que o Dr. Tito não tinha culpa...

A vedeta da caneta, sem sequer se apresentar, nem perguntar pela saúde à mulher que parou de trabalhar para o receber, ainda à frente de toda a gente, perguntou à queima-roupa:

-- Então Senhora Ana, corre-lhe bem o negócio da bruxaria?

Todos calaram para ouvir a resposta.

– Mas cais negócio!? Aqui não se faz negócio, aqui cura-se gentes e adivinham-se coisas. Negócio fez vossa mercê ao querer casar-se com a filha do seu patrão! Mas correu-lhe mal... agora anda zangado com o mundo porque se lhe meteu essa ideia que ela lhe anda por os cornos com outro. Desengane-se homem! Vossa mercê se está engano! Ela não tem outro. Do que a sua esposa gosta é de moças magras como ela! Você ser corno é só corno de vaca! 

O jornalista não precisou de mais para fazer o seu trabalho.

A reportagem saiu a 29 de Novembro de 1906. Dizia que a Bruxa da Arruda tinha uma fortuna avaliada em mais de vinte contos. Não falou no Dr Tito nem no corno da vaca. 

É normal, quando conhecemos uma realidade que vemos retratada no jornal, percebemos sempre que o essencial fugiu à letra de imprensa.