terça-feira, 10 de agosto de 2021

Luzia Pinta de Angola a Castro Marim


Arrancaram-lhe a roupa e deixaram exposto e o nu o seu corpo na maturidade dos quarenta e seis anos. O chão de Lisboa estava frio naquela manhã de dezembro. Mas a Luzia não sentia frio. O medo tomou-lhe conta de todos os sentidos. Não conseguia sentir outra coisa alem do terror. 
À volta, tres padres e dois carcereiros. Os eclesiasticos de batina preta e os carcereiros vestidos de linho e flanela a cheirarem a cebola e a vinho. Atiraram-na para cima de uma especie de torno de madeira onde a ataram com as mãos e os pés presos atrás das costas e a madeira encostada ao corpo. 
Os carcereiros rodaram um mecanismo que esticou as cordas. A Luzia sentiu a madeira a entrar-lhe nas costas enquando as articulações dos braços, ombros, ancas joelhos e pés cediam. Os intestinos e a bexiga esvaziaram-se instantaneamente. A boca abriu-se num hurro de dor que se ouviu la em baixo junto ao Tejo.
O mais velho dos padres com a mão direita interrompeu o trabalho dos carcereiros e perguntou à Luzia se queria confessar. 
Ele queria.
Confessou tudo o que o padre quis que ela confessasse. A tortura durou sete dias. 
Os padres saiam para comer e descansar. Os carcereiros tambem iam rodando. Apenas Luzia Pinta ficou por ali. As vezes atiravam-lhe agua para cima que ela bebia.
Enquanto durou a tortura a Luzia confessou.
Confessou celebrava espiritos cantando, dançando, comendo e bebendo e que chamava a estas festas calundus. 
Confessou que era bruxa, que curava com ervas, que via o futuro nos buzios. Confessou que evocava espiritos da natureza e evocava os antepassados. Que possuida pelos espiritos que evocava dava conselhos e consultas. 
Confessou que vinha gente de toda a provincia de minas gerais para vê-la e que lhe pagavam pelas consultas e trabalhos de magia que fazia.
Confessou que foi amante do seu dono, aquele, o Pinto Portugues que a comprou novinha com doze anos  ainda e virgem. Confessou que foi violada pelo Pinto até este adoecer e morrer de mal desconhecido que foi ela que provocou e pediu aos espiritos porque não aguentava mais a carne do Pinto Portugues na sua carne. Confessou que foi amante dos dois filhos do Pinto. Os donos que a herdaram. Confessou que por artes màgicas os encantou aos dois que lhe deram a liberdade antes de casarem com duas irmãs ricas. Confessou que foram eles que lhe deram o nome de Luzia Pinta.
Confessou que vivia livre desde os vinte e seis anos numa casinha que os irmãos Pinto fizeram para ela encostada à capela de Nossa Senhora da Soledade, ja afastada do centro da freguesia da Igreja Grande na Vila de Nossa Senhora da Conceição do Sabará, em Minas Gerais, bispado do Rio de Janeiro, Brasil.
Confessou que cultuava os Espiritos da Natureza, desde que se lembra. Confessou que aprendeu com uma avó velha là nas Lundas em Angola, onde nasceu e de onde a raptaram para a escravizar. 
Confessou que vivia amantizada com um negro fugido que tocava tambor nos rituais de suprestiçao e feitiçaria que fazia. Confessou que só dormia com o tal negro quando a ela lhe apetecia e ele tinha vontade.
E teria confessado mais, se o inquisidor quisesse fazer mais perguntas.
Como era preta e não judia. Como nunca tinha sido batizada em cristo. Como a suprestição que fez foi causada pela ignorancia e não cuspiu na cruz nem na hostia.
E como se estava a aproximar o Natal.
O inquisidor, na sua infinita misericordia,  ao fim de uma semana de tortura, que acabou a 24 de Dezembro de 1742, decidiu mandar recolher a bruxa angolana aos calabouços da inquisição porque a investigaçao estava acabada.
A Luzia Pinta esperou na prisão da inquisiçao de Lisboa um ano e meio até ao auto-de fé que determinou a sentença.
Na torre do tombo está ainda o papel da sentença: Culpada de abjuração de leve, condenada a quatro anos de degredo em Castro Marim, não entrar mais em Sabará.
E pronto. Luzia Pinta. Mãe de Santo, curandeira, amante e sentenciada pela inquisição. De Angola até Castro Marim por onde se perdeu o rasto da Luzia e onde eventualmente os seus ossos repousarão anónimos à espera de justiça.