quinta-feira, 14 de maio de 2020

A Bruxa Boa de Ruhamo

Há coisa de cem anos atrás, por volta de 1920, no país mágico de brumas tropicais, lagos e montanhas verdes nascia Zura Karuhimbi. O parto possível de uma menina, numa pequena aldeia remota da região de Ruhamo. Nesses anos, a terra do Ruanda era administrada pelo todo-poderoso reino da Bélgica. Quero dizer que era um rei em Bruxelas que se decidia sobre a terra, a vida, a miséria e a morte dos ruandeses. A família dos Karumbi, ao contrário da maior parte das pessoas da sua aldeia, não eram agricultores nem caçadores. Dedicavam-se às práticas mágicas de cura e adivinhação.Tratavam dos vivos e dialogavam com os espíritos dos Deuses para a promoção do bem estar. A pequena Zura cresceu neste universo e desde pequenina que aprendeu as milenares e secretas artes mágicas. O governo colonial belga carimbou um papel a decretar que os Karumbi eram hutus. Foi nesse ano de 1925, apequena Zura foi registada... teria já feito cinco aninhos espertos,saudáveis e animados. Na lógica burocrática colonial, o governo da Bélgica decidiu dividir a população de Ruanda em dois grupos distintos:Hutus e Tutsis. Criaram até bilhetes de identidade de cores diferentes que diferenciavam os hutu dos tutsis. Os hutus, eram o grupo maioritário. A minoria tutsi era considerada pelos belgas como uma etnia "ligeiramente superior" e, por isso, tinha acesso a trabalhos um bocadinho mais bem remunerado que os hutos, os tutsis podiam chegar  a criados de casa. Como estavam profissionalmente mais próximos dos colonos, tiveram melhores oportunidades de estudo. Falo naturalmente de escolas religiosas edificadas por missionários. A Zura, como huto que era, sempre esteve afastada do domínio colonial e foi crescendo como aprendiz de feiticeira. Depois da segunda guerra mundial, porque era feio os países modernos terem colónias, o Ruanda passou a ser um território “protegido” pelas nações unidas. Mas continuou a ser administrado pelos belgas. A Zura nessa altura era uma valente mulher de vintes e tais, mãe de filhos, já reconhecida como parteira, curandeira, feiticeira. Era a conselheira de todas as mulheres para as horas boas e más. Vinham de terras distantes para se consultar com a Zura. Chegavam para ouvir o que espíritos tinham para dizer através dela. Vinham e traziam os filhos, para tratar de doenças físicas, emocionais e espirituais.  No final dos anos cinquenta, os hutus revoltaram-se. O Rei do Ruanda escolhido pelos belgas , um tutsi subserviente a Bruxelas, foi assassinado. Os tutsis foram caçados pelos hutus que rejeitando o colonialismo, descarregavam nos tutsi as frustrações contra os colonos fugidos para a Europa. São os hutus que fazem a independência e se tornam o grupo étnico no poder. Alheia aos jogos de poder e às caçadas de homens por homens, a Zura continuou a trabalhar no seu oficio de feiticeira. Atendia hutus e atendia tutsis. Quando entravam na casa da bruxa Zura, os homens era meninos à procura de consolo e as mulheres eram irmãs a procurar ajuda. Lá longe em Kigali foram aprovadas outras leis de opressão, humilhação e injustiça. Desta vez a vitima era os tutsis. Os hutus aplaudiram e praticaram a nova lei. A Zura não sabia de leis. Mas via os tutsis a passar a sua porta. Fugiram, primeiro os mais ricos. Depois os pobres. Por fim, os que se atrasavam a fugir, esses fugiram miseráveis. Fugiam para se refugiarem no Uganda e Burundi. Passaram trinta anos disto. Pouco a pouco, os hutsis que fugiram miseráveis e pobres foram regressando para se dedicarem a agricultura. Os hutsis que fugiram ricos ficaram no Huganda...a prosperar e a organizarem-se. Em 1990 começaram os ataques dos tutsis aos postos de um governo corrupto e desestruturado de hutus. Nos anos noventa a Zura era já uma viúva de mais de setenta anos. Tinha filhos, netos, bisnetos. Há muito que não tinha menstruação. As pessoas respeitavam-na porque era uma curandeira velha,com todo o estatuto que isso tem em qualquer parte do mundo de gente sensata. Quando a história descambou no que sabemos. Quando as catanas deixaram de cortar mato e abrir espaço para hortas e passaram a semear morte e destruição, a Zura assistiu a tudo triste e chorou devagar sem pranto, como choram as velhas. Começaram os massacres feitos por meninos assustados e alimentados de ganza e aguardente falsificada. Crianças soldados, comandados por homens maus e viciosos, telecomandado por homens e ricos e cruéis. Os gritos choros e tiros ouviram-se nos arredores de Ruhamo. A velha Zura, fez o que tinha a fazer, consultou o seu oráculo e falou com os seus Deuses para estancar a hemorragia. Os Deuses disseram-lhe que não estava na mão dos Deuses parar aquilo que os homens tinham começado. A Zura compreendeu os Deuses e descompreendeu os homens. Foi nestes dias de agonia que a Zura Karuhimbi se veio a revelar como uma das mais poderosas feiticeiras que alguma vez pisou o chão velho da terra da Mãe África. Nessas semanas amargas do ano de 1994, pelos campos à voltada aldeia andavam os homens e meninos armados e espalhar morte e destruição. A coisa começou na primeira noite da lua crescente do terceiro mês. À casa onde a velha vivia com os espíritos e Deuses, foi chegando gente desesperada. Chegaram muitos. Na sua maioria famílias tutsis, alguns homens do Burundi e até dois ou tres europeus. Fugiam desesperados. Quando chegavam, a bruxa velha consultava o seu oraculo e dizia: entrem. A entrada da casa da velha feiticeira mantinha-se resguardada por cortinas. Entrava quem ela mandava entrar e ficava lá dentro quem ela autorizava. Assim é naquela montanha de África, desde que o tempo tem memória. Lá dentro, no espaço reservado aos Deuses e espíritos, mais de cem pessoas. Foram-se amontoado como podiam. Quando a Lua estava quase cheia, e isto calhou num sábado, chegaram dois jipes e uma camionete todo-o-terreno carregados de armas, fardas e morte. Do lado de fora da casa, instalou-se o cerco do exercito de meninos drogados e infelizes  e homens tristes e maus. Catanas e armas de fogo prontas a matar sem razão mas definitivamente. Um homem maduro e grande, a cheirar a álcool, melhor fardado que todos os outros e de óculos escuros veio falar à velha. Dizia que sabia que havia tutsis na zona e queria que ela afastasse as cortinas para ele passar e para os seus homens-meninos a quem chamava de filhos, revistassem a casa. O homem também era hutu, como ela. Seguramente vinte ou trinta anos mais novo. A Zura Karuhimbi não tinha mais armas para se defender alem da sua magia e do seu ancestral conhecimento e intimidade com os Deuses. Fez o que tinha a fazer. Andou na direcção da porta da casa grande dos espíritos, acocorou-se a frente do homem fardado, afastou os panos e despejou toda a urina que tinha na bexiga enquanto falava baixinho para a terra que molhava. Depois ficou de pé levantou a cabeça para falar com o militar que era uns dois palmos mais alto que ela e disse: -- Esta é a casa dos deuses, aqui vivem e são cultuados espíritos de muito poder e força. Os espíritos que aqui estão são espíritos de paz e de vida, mas se forem incomodados serão espíritos de destruição e morte. O chão da entrada que eu molhei, é o chão sagrado onde moram os deuses. Molhei para não ser pisado, e para te proteger. Tu não queres atrair a morte e a destruição sobre ti. E é sobre ti que cairá a maldição se tu ou qualquer um dos teus homens passar a cortina que separa o dentro do fora. Eu sou uma viúva velha, já vi muitas estações do ano, não sou nova e enérgica como tu... Não me cabe a mim decidir o que deves fazer com os teus homens. Mas é meu dever dizer-te a ti e a todos a verdade das coisas. O militar ouviu com atenção. Depois recuou, falou com os seus concelheiro de guerra e agradeceu à velha o sábio concelho. Deixou uma garrafa de aguardente e uma galinha como presente. Levantaram o cerco vinte minutos depois de terem chegado. Os refugiados tustis continuaram achegar a partir enquanto durou a guerra. Militares hutus voltaram algumas vezes. A velha Zura sempre os recebeu com educação, sempre os aconselhou bem e sempre o fez partir em segurança para todos com a sua magia. Anos depois da guerra os do governo e das nações unidas quiseram dar-lhe uma medalha. Quando lhe perguntaram quantas pessoas passaram por sua casa para saberem quantas pessoas salvou, a velha Zura Karuhimbi disse que nunca pensou nisso, porque sempre esteve entretida com as coisas que tinha para fazer e que o seu trabalho era de curandeira e não de cobradora de impostos. Descansou de uma vida de trabalho em finais de dois mil e dezoito. Quase centenária, deixou saudades naqueles que a conheceram e que ouviram a sua gargalhada que persistia em fazer-se ouvir mesmo nos momentos mais escuros, das noites mais escuras e sem lua nas montanhas verdes do Ruanda.