terça-feira, 26 de maio de 2020

A língua da Chavela

Nasceu em San Joaquín de las Flores, Costa Rica. Foi registada como Isabel Lizano. María Isabel Anita Carmen de Jesus Vargas Lizano, para ser completo e preciso. A vida e a vontade própria fizeram dela Chavela Vargas. Filha de camponeses, órfã aos quatorze vendeu toda a fortuna da família que consistia em duas vacas e foi para o México. Trabalhou como empregada de balcão numa taberna, vendeu chapéus numa loja, vendeu o corpo nas ruas, vendeu o corpo como modelo para fotografias, vendeu textos para os jornais, vendeu revistas e jornais quando em vez de lhe pagarem em dinheiro lhe pagavam em material impresso. Depois de começar a vender a sua voz em canções, não voltou a ganhar a vida de outra maneira. Cantou até morrer. Sempre que subia a um palco, fazia-o com medo. Depois cantava e o medo desaparecia por magia. Cantava e chorava. E toda a gente chorava nos concertos dela. Dizia de si própria que não era politica. Mas não deixou nunca se enganou no seu posicionamento politico. Nunca esqueceu o meio de onde veio. Viveu muitas vidas. Umas mais doces outras mais amargas. Todas elas cheias a transbordar. Foi nos anos quarenta, logo a seguir à guerra, que José Alfredo Jimenez, El Rey, a “descobriu”. Viu a moça cantar num obscuro palco de cantina, vestida como um camponês, de calças e poncho. Na voz toda a dor e cor do México verdadeiro. A voz e maneira de cantar da Chavela, assentavam que nem uma luva nas letras e melodias do Rey. Ficaram juntos uma eternidade de noites tequilhadas. Cantavam e bebiam até cair. Depois acordavam, levantavam-se e cantavam e bebiam mais. Foi assim durante uns tempos. Dois corações conservados em álcool a uivar à lua. Dois fígados cansados de destilar tanta emoção. Terá sido depois deste período, que o José Alfredo fez um esforço para se libertar do álcool. E da Chavela. Esforço em vão, pois continuou amigo e confidente da Chavela e da tequilha até à hora da sua prematura morte. A Chavela nesta pausa de secura do Rey, terá conhecido o Diego de Rivera e a Frida Kahalo. Com o Diego bebeu, aprendeu arte e fundamentou a sua consciência politica com argumentos científicos e sociais. Com a Frida, viveu um amor e uma paixão proibida pintada na história. Com ambos bebeu. A carreira da Chavela segue empurrada por uma certa intelectualidade de esquerda e a sua voz vai passando na rádio. Continuava vetada a sua entrada às maiores salas de espectáculos. A cantora não queria usar vestidos e saltos altos e nas salas grandes não queriam uma cantora masculinizada a cantar e a chorar rancheiras. Apesar do boicote associado ao escândalo que era a existência permanente e diária da Chavela, a sua voz criou o reconhecimento necessário. Entrados nos anos cinquenta, aproveitou a explosão do turismo americano e passou a cantar em Acapulco. A sua vida sexual, os seus consumos e a sua roupa, no ambiente de festa “very tipical” dos resorts da classe média alta dos gringos, passavam despercebidos com o barulho das luzes. A voz da Chavela não. A voz da Chavela não passava despercebida. Foi a voz que a levou ao casamento da Elizabeth Taylor com o Michael Todd. Uma das mais importantes festas do seculo XX em Acapulco. A Chavela foi não como convidada, mas contratada para cantar. Na manha seguinte, no dia três de Fevereiro de 1957, acordou na cama com a Ava Gardner. Dizem que foi por causa do escândalo dessa manhã, que o Frank Sinatra se separou definitivamente da Ava. Uma coisa eram as traições com outros actores ou famosos, outra coisa era ser encornado por uma cantora mexicana, vestida de camponesa e que a cia dizia que era comunista. O divorcio da Ava e do Frank saiu nesse ano. Acabada a época estival em Acapulco voltava para a Cidade do Mexico onde escandalizava e apaixonava a sociedade católica e conservadora dos finais dos cinquenta e inicio dos anos sessenta. Aconteceu-lhe então a tragédia de um grande amor. Numa festa nos arredores elitistas da Cidade do México, conheceu uma jovem, amante de um senhor muito importante na industria de musical do México: Emilio Azcárraga. Emilio era casado e bem casado na alta-burguesia mexicana, mas apaixonadíssimo por uma jovem modelo que gostava de exibir por todo o lado. Acontece que a bela modelo de curvas perigosas, se encantou pelo hálito de cigarros negros e tequilha da língua da Chavela Vargas. Deixou pendurado o manda-chuva da industria musical para se ir deitar sabe-se lá onde com a cantora. A partir daí o todo-poderoso empresário cortou completamente a carreira musical da Chavela que deixou de poder entrar nas gravadoras. Como nas cantinas nunca a proibiram de entrar, a cantora desceu em espiral até ao fundo de todas as garrafas. Bebeu todos os copos. Nos anos setenta ainda cantou profissionalmente em meia dúzia de sítios. Mas nos anos oitenta vivia da solidariedade de amigos e desconhecidos. Foi no ano de mil novecentos e noventa que numa miserável rua da cidade do Mexico, um velho amigo a encontrou encharcada e quase moribunda, tinha setenta anos. O amigo, percebeu que era preciso ajuda-la mais do que dar-lhe dinheiro para a próxima garrafa, que era isso que ela pedia. Levou umas semanas a convence-la, mas meteu-a no carro e levou-a para o deserto. Deixou-a uma semana com os índios. Os xamanes deram-lhe a beber poyote celebraram todos os rituais necessários para que voltasse a nascer. O milagre aconteceu. A Chavela voltou a nascer. Deixou de beber e continuou a cantar. No ano seguinte, o Pedro Almodover “descobriu-a” num velho vinil e levou a sua voz para o cinema. “Piensa em mi” cantou para o mundo. De noventa e um até dois mil e doze, não parou. Foi o Pedro Almodovar quem a trouxe para Madrid, onde viveu num lar os ultimos vinte anos da sua longa vida de noventa e tres anos. Cantou até ao ultimo dia. Dizia que gostava de viver em Madrid porque tinha mais facilidade em conversar com o fantasma do Lorca de quem se considerava irmã espiritual. Poucos meses antes de morrer, numa das frequentes entrevistas, um jornalista perguntou-lhe se tendo nascido na Costa Rica e vivendo em Madrid há quase vinte anos, ainda se considerava mexicana. -- Nós os mexicanos, nascemos onde nos dá na puta gana!