quarta-feira, 10 de junho de 2020

Bonita com o Sol em Peixes e ascendente em Escorpião

Nasceu com o sol em Peixes, no dia internacional da mulher. Oito de março de 1911, precisamente doze dias antes do grande incêndio em que os donos das fábricas mataram aquelas cento e tal operárias em Chicago. A menina de que vos falo nasceu milhares de quilómetros a sul e sobre o sol quente que seca a terra e os homens. A anos luz de distância das fábricas que soltam fumo e produzem lucro. Quinhentos quilómetros afastada de Salvador, capital e da Bahia e cidade do Mundo. Nasceu na Malhada de Caiçara, arredores de Glória, interior remoto e desviado do sertão baiano, ali juntinho à divisão com o estado de Alagoas. A mãe chamava-se Joaquina Conceição Oliveira, Oliveira era do marido, mas todos a conheciam por Dona Déa. A filha, foi chamada de Maria da Déa, Maria de nome próprio e da Déa, por parte da mãe. Em 1926, já a Maria tinha corpo e desejos de mulher, e toda a beleza de uns quinze anos saudáveis de quem cresceu no campo. Porque o clima é propício às tentações do tinhoso e a moça era assanhada de resposta e de olhares, a Dona Déa decidiu casar a filha antes que fosse tarde. Disponível estava um primo que, sendo uns dez anos mais velho, tinha como ofício fazer e consertar sapatos. Além da profissão de sapateiro, o Zé de Neném, assim se chamava o primo, tinha também o hábito de se embebedar com cachaça e gastar o que ganhava pagando momentos de convívio com raparigas pobres que viviam de se prostituir. As famílias quando combinaram o casamento, tinham esperança que com uma moça bonita na cama, o Zé se deixasse de putas e ficasse mais tempo em casa. A Maria da Déa, além de bonita, já vimos que tinha vontade própria. Casou com o primo mas não se sujeitou à sina de ficar mulher-casada, queria ser apenas mulher. Com feitio distraído e sonhador dos nascidos em peixes, mas com os repentes violentos dos escorpiões, seu marcador ascendente. Como seria de esperar, o casamento não tornou mais caseiro o Zé, nem mais recatada a Maria. Foi um relacionamento conturbado, dizem os historiadores que é malta que não gosta de escrever sobre zaragatas e cenas tristes de violência doméstica. O Zé de Neném, além de putanheiro e bêbado, quase sempre, às vezes ainda lhe dava para ser violento. A Maria defendia-se como podia e defendia-se bem. Mulher do nordeste às vezes vira bicho e quem vai à guerra dá e leva. Farta de ser abusada e negligenciada pelo marido, iniciou um caso extraconjugal, coisa que acontece com frequência. Envolveu-se com um comerciante, João Maria de Carvalho, que lhe oferecia sapatos, roupas e outros presentes... A Maria gostava de ser bem tratada e de se sentir bonita. O sapateiro quando ficava sóbrio desconfiava dos sapatos, dos vestidos e dos cornos, dizia que a matava. Depois bebia e aquilo passava-lhe. Mas, se as coisas não tivessem acontecido como aconteceram, aquilo acabava mal. Não que tenha acabado bem. Mas acabava mal e mais cedo. Naqueles anos violentos, deambulava pelos sertões da Bahia, Pernambuco, Sergipe e Alagoas o grupo de Lampião, Virgulino Ferreira da Silva que era assim que o homem se chamava. Ladrões nómadas e justiceiros contra o feudalismo dos coronéis senhores absolutos num mundo de gente pobre sem justiça nem nada para roubar. Quando a Maria viu o Virgolino apaixonou-se pelo moço calado e de óculos, que apesar da atitude sempre discreta, emanava poder. Ele encantou-se com a beleza da cabocla, sangue cruzado de índia, branca e negra naquela cor de cobre e fogo que as deusas e as trabalhadoras rurais têm no norte do Brasil. Tornaram-se amantes porque se amaram desde o primeiro dia em que se encontraram. Para trás ficou o sapateiro, o cheiro a cachaça e os olhos negros. Para a frente toda uma vida de aventuras. Passariam nove anos juntos. Nove intensos anos que perduram numa história de amor para sempre contada. Ele, o Lampião, era um rei sem coroa com o seu bando de cangaceiros como corte. Ela, rainha nos acampamentos e senhora absoluta do coração do Lampião, seu rei proclamado. Na extravagância dos roubos e dos saques, apareciam tesouros que a Maria arrecadava. Gostava de se vestir com vestidos de seda, luvas com estampas florais, sandálias e botas de cano curto. Preciosidades das senhoras e damas das cidades que uma menina do campo nunca sonhara um dia vir a ver, quanto mais a puder usar. Também gostava de joias pregadeiras que dispunha na faixa de couro da sua espingarda. Uma costela que devia ser de cigana, levá-va-a a enfeitar os cabelos com fitas onde cosia moedas, de preferência de ouro ou de prata. No pescoço e nos pulsos, perfumes. Ao lado do seu companheiro, no calor da batalha, vestia couro como todos os outros. Mas sempre que havia ocasião para isso, gostava de se vestir bonita e de se enfeitar. A vida no cangaço era difícil, mas a Maria não conheceu outra vida que não a difícil. Pelo protagonismo e magnetismo do companheiro, às vezes surgiam crises de ciúmes. Mas os relatos contam que se tratavam ambos com paciência e carinho. Em 1931, viajaram para uma fazenda escondida. Um lugar num paraíso verde onde a água corre e os pássaros cantam. Afastados da guerra, que era o dia-a-dia, para desfrutarem de uma lua de mel que nunca tiveram. Foram os dias mais felizes de ambos. Terá sido nestes dias felizes que a Maria se engravidou. O casal teve uma filha, batizada como Expedita Gomes de Oliveira Ferreira. As regras não escritas, mas escrupulosamente cumpridas do cangaço, determinavam que a criança nascida no mato, fosse entregue para ser criada por um casal de amigos sedentários. Assim fizeram eles. Entregaram a menina a um casal de pequenos criadores de gado. Diz a lenda que a Maria, amarrou um pano sobre as mamas cheias para secar o leite e para que não se caíssem. Cavalgava e chorava de dores no peito sem fazer um som. A partir daí passou a contar os dias para voltar à fazenda e poder ver a sua filha. Foram seis anos de idas e vindas, umas vezes com Lampião, muitas vezes sozinha. Foi numa manhã fria de finais de julho que tudo se terminou. Sem aviso prévio, como quase sempre acontecem as coisas definitivas. A Maria tinha-se levantado e começado a preparar o café, quando percebeu pelo nervosismo dos cavalos que havia gente estranha nas proximidades. O exército atacou mortífero. Usaram uma metralhadora. Não queriam fazer prisioneiros. O combate foi rápido e desigual. O homem que amava foi dos primeiros a cair. O Lampião estava habituado a fazer emboscadas e aos combates em campo-aberto e a cavalo, não sabia como reagir quando foi ele o emboscado. De pé e armas na mão caiu morto. A Maria tentou fugir. Foi baleada duas vezes, primeiro nas costas, depois à queima-roupa no abdómen. O cabo José Panta foi quem disparou. Foi este homem quem a decapitou. Com a Maria ainda viva cortou-lhe a cabeça. Estava a cumprir as ordens de levar as cabeças de todos os cangaceiros para serem exibidas na cidade. Assim fizeram os da volante. Foi ainda este cabo da guarda quem pela primeira vez lhe chamou Maria Bonita. Nem a família nem o bando de Lampião a tratavam por Maria Bonita. O sobrenome de Bonita, só se difundiu depois da sua morte. Tinha 27 anos.